domingo, 10 de julho de 2022

Cristovam Buarque*: Embaixadas partidárias

Blog do Noblat / Metrópoles

O problema maior é permitir ao governo comprar o apoio de parlamentares. Serão embaixadores em agradecimento

Raro o dia em que não somos surpreendidos por alguma proposta irresponsável de parlamentares, visando seus interesses corporativos em prejuízo do país. A mais recente é a Emenda à Constituição para permitir ao Presidente escolher embaixadores entre parlamentares, sem que eles percam o mandato enquanto ocupam embaixadas no exterior.

A primeira irresponsabilidade é sobre a qualificação do escolhido. O Brasil dispõe de uma escola de formação de diplomatas, considerada uma das melhores do mundo, se não a melhor. Fui seu professor de economia por dois anos, e em nenhum outro ambiente acadêmico encontrei alunos selecionados e seguindo curso com mais rigor do que no Instituto Rio Branco. Ingressar nele já indica uma qualificação especial, sair dele formado indica preparo de excelência para o exercício da atividade diplomática. Ao longo das quase oito décadas de seu funcionamento, o mundo inteiro reconhece a qualificação de nossos diplomatas saídos do Rio Branco, e do impacto deste profissionalismo de excelência na condução da política externa brasileira.

Nada impede, embora seja raro, que uma pessoa de fora da carreira tenha qualificação para ser um bom embaixador do Brasil. Temos uma rede de cursos de Ciências Políticas e Relações Internacionais onde podem ser encontrados potenciais diplomatas. Alguns parlamentares têm a qualificação necessária. Embora sejam raros, além do caráter ao diálogo, alguns possivelmente falam idiomas estrangeiros, sabem os problemas da geopolítica mundial, da história das relações do Brasil com o país para onde for enviado.

A legislação atual já permite que parlamentares com estas qualificações possam ser embaixadores ou embaixadoras, desde que não acumulem o novo cargo para representar o país, com o mandato eleito por um partido.

O problema maior da Emenda é permitir ao governo comprar o apoio de parlamentares. Serão embaixadores em agradecimento, independente de qualificados para o cargo. Embaixadores por manipulação política, o Presidente substitui o parlamentar por seu suplente, mudando o resultado de votações no Congresso. A embaixada será um banco de espera para parlamentares inconvenientes com suplentes dóceis, sacrificando o serviço diplomático e o país para permitir arranjos políticos circunstanciais.

Essa PEC é um desatino: um fisiologismo explícito, ao aumentar o número de cargos no mais alto nível para livre provimento do governo; um nepotismo visível ao indicar parlamentares próximos ao presidente para assumirem embaixadas; descarada permissão ao conchavismo de atrair candidatos nas eleições com a promessa do suplente assumir o cargo, quando o titular for nomeado para a embaixada; descabido compadrismo entre os que se sentem donos do país e acham que os diplomatas representam ao governo, não ao Estado brasileiro; e uma vergonhasa promiscuidade entre o Executivo e o Legislativo, enquanto outra emenda não amplia o direito também aos ministros dos tribunais superiores, para serem embaixadores durante parte do respectivo período vitalício. Ou, diante de tanto maltrato à Constituição, cria-se o cargo de suplente de Ministro do Supremo, específico para quando o titular estiver ocupando embaixada. Será mais uma forma do presidente interferir em outro poder.

Em 1988, depois de décadas de luta, conseguimos elaborar uma constituição cidadã, aos poucos, de emenda em emenda, ela vai se transformando em constituição eleitoreira, servindo aos políticos do momento, corroendo a credibilidade da democracia por desmoralização dos parlamentares; degradando a eficiência do serviço público, sob os olhos indignados e assustados de quem percebe, impotentemente, os legisladores em causa própria impondo seus interesses momentâneos aos interesses permanentes do País..

*Cristovam Buarque foi senador, ministro e governador

 

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