domingo, 24 de julho de 2022

Dorrit Harazim - Silêncios

O Globo

Difícil dizer quem é o mais desprezível para o cargo que ocupa

A horda de milicianos ideológicos que invadiu o Capitólio naquele 6 de janeiro de 2021, em Washington, seguiu a palavra de ordem lançada pelo próprio 45º presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, aquartelado na Casa Branca: interromper a qualquer custo o processo democrático em curso naquele dia. Isto é, impedir seu vice-presidente, Mike Pence, de certificar em ata a vitória nas urnas do democrata Joe Biden para lhe suceder. Como os amotinados traziam no peito graus variados de intoxicação cívica, prevaleceu a eclosão da fúria dirigida —aquela que se alimenta da falsa coragem coletiva. Houve mortos, mais de cem policiais do Legislativo ficaram seriamente feridos (dois se suicidaram nos dias seguintes), e Pence correu o risco real de ser degolado pela malta trevosa de Trump, o homem a quem servira com fidelidade por quatro anos.

Ainda assim, Pence não emitiu até hoje uma condenação pública ao complô golpista envolvendo seus antigos parceiros de governo. Seu silêncio deve ser atribuído à submissão, medo? Ou faro político de candidato à Presidência em 2024? Covardia? Ou estratégia para um disputadíssimo livro de memórias? Pouco importa, Pence nada precisa falar. Sozinho, ele fez mais pela continuidade democrática dos EUA do que a soma dos agentes públicos daquelas horas caóticas — na hora H, ele decidiu concluir o rito de certificação de Joe Biden como vencedor nas urnas. Arriscou alto, meio que às cegas. Mas revelou ter serenidade cívica e consciência histórica. Isso não o torna menos ultraconservador no espectro político do Partido Republicano, nem menos retrógrado em questões de gênero. Mas faz dele um servidor público com direito a verbete encorpado.

O que nos leva ao silêncio inglório de um Augusto Aras, de um Arthur Lira e demais associados trevosos do atual mandante nacional. Raras vezes, em tempos modernos, um presidente do Brasil conseguiu gerar uma avalanche de repúdio tão maciça a um ato oficial quanto Jair Bolsonaro na segunda-feira passada. Eram mais de 50 os integrantes do corpo diplomático estrangeiro convocados ao Palácio da Alvorada para uma apresentação que revelou ser uma arapuca, em que o anfitrião/candidato à reeleição falou por 45 minutos. Tema único, com transmissão pela TV Brasil, canal no YouTube e Facebook: críticas e calúnias ao sistema eleitoral brasileiro.

Deu ruim. A comunicação formal de Bolsonaro de não respeitar o resultado do sistema eletrônico, a seu ver suspeito, virou bumerangue diplomático e levou quase uma centena de entidades de relevância nacional a despertar do torpor cívico. Há três anos e meio, notas de repúdio a atos bolsonaristas repetem o protocolar brado de impotência “é inadmissível” ou “é inaceitável” ou ainda “é intolerável”, quando, na realidade, já o admitimos, o aceitamos e o toleramos. Desta vez, o “inadmissível” — o presidente do país convocar plateia mundial para proclamar sua desconfiança no resultado das urnas — é de fato inadmissível. Cabendo, portanto, avaliação e encaminhamento jurídicos.

Portanto, foco total no procurador-geral da República, Augusto Aras, invisível por estar de férias. Quando, por fim, materializou-se, após um hiato de três dias de silêncio sepulcral, apareceu a bordo de uma gravata tropicália numa gravação antiga, em que afirma que quem sair vencedor nas urnas será empossado. Baita coragem “diante dos últimos acontecimentos no país”, como o causídico classifica o golpismo explícito do presidente da República! Com o mutismo de Arthur Lira, presidente da Câmara que deve representar o voto e os anseios da população brasileira, a história é outra. Difícil dizer qual o mais desprezível para o cargo que ocupa. Em relação a Bolsonaro, Aras é devedor. Lira é avalista, pode mais. O primeiro foi reconduzido ao cargo sob aplausos do Senado, e o segundo comanda o latifúndio do orçamento secreto — portanto, até nova ordem, pode continuar a esquecer que algum dia foi servidor público.

Quanto desperdício para um país ter de lidar com figuras desprezíveis — elas abundam na órbita bolsonarista —, quando a emergência maior deveria mirar na sustentabilidade da vida. Mas vamos em frente. Deveríamos ter aprendido melhor o que ensinou a pensadora mestra do século XX: somente depois de admitir que, em qualquer tempo, tudo é possível, conseguiremos nos confrontar honestamente com o que somos. E só então poderemos resistir à perigosa realidade chamada mundo. A receita de Hannah Arendt?

— O que proponho é muito simples: nada além de pensar o que fazemos.

 

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