Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Quem acredita que as instituições resolverão
por inércia a situação política não entendeu o momento do país.
Qual é o projeto estratégico e de longo
prazo do bolsonarismo? Responder a essa pergunta é decisivo para entender o
sentido das próximas eleições. O caminho almejado por Bolsonaro é muito similar
ao traçado na Venezuela chavista. É uma rota de destruição paulatina das
instituições democráticas, substituindo-as por um modelo concomitantemente
autocrático e populista, que reduz o controle independente sobre os governantes
e mobiliza constantemente setores populares, inclusive por meio da violência,
em apoio ao líder máximo. Não é possível saber se essa ideia vai vingar no
Brasil, mas o atual presidente tentará, com todas as suas forças, alcançar esse
objetivo.
À primeira vista, trata-se de uma grande
ironia da história. Nas eleições de 2018 o bolsonarismo não cansou de dizer que
o PT queria que o Brasil se transformasse na Venezuela. Aproveitava-se do fato
de que os governos petistas tinham se imiscuído demais na política interna
venezuelana, o que foi um erro enorme de política externa. Mas, observando mais
atentamente a trajetória de Bolsonaro, desde aquela época já se percebia que
ele tinha mais similaridades com Chávez do que qualquer outra liderança
política.
Ambos têm origem militar e praticamente foram expulsos da instituição por seu personalismo golpista. Ideologicamente seguem um populismo autoritário no qual não há espaço para partidos nem para uma sociedade civil independente. Quando chegou ao governo, Bolsonaro aumentou ainda mais as similaridades em sua luta contra a Justiça e a imprensa, na campanha pelo armamento de seus aliados na sociedade e na política externa maniqueísta e isolacionista. Por fim, e mais importante: os dois optaram não pelo golpe clássico de Estado, mas sim por usar a democracia para jogar o povo contra as instituições - Chávez por meio de plebiscitos e Bolsonaro usando as redes sociais para insuflar uma revolta contra o sistema.
Evidentemente que haverá também
dissonâncias entre essas duas figuras políticas, principalmente por conta da
diferença de contextos. Bolsonaro tem uma ditadura militar prévia como base de
suas ideias, ao passo que o chavismo criou o seu próprio modelo autocrático num
país que tinha ficado imune da onda de regimes autoritários que assolaram a
região entre as décadas de 1960 e 1980. Outras diferenças entre Brasil e
Venezuela poderiam ser citadas, porém, o fato marcante é que ambos os líderes
escolheram uma estratégia política similar de construir uma autocracia pela
destruição e, ressalte-se, desmoralização paulatina do jogo democrático.
Embora admire muito Viktor Orbán,
governante da Hungria, além de reverenciar Trump e Putin, o caminho
bolsonarista é muito mais parecido com o do chavismo, por causa de
peculiaridades sul-americanas e pelo perfil militar de seu líder. Assim, é
possível listar cinco passos estratégicos desse modelo político.
O primeiro é o de construir o poder
político com base numa lógica da violência. Há dois pilares aqui, o oficial e o
informal, de modo a criar uma unidade (artificial) entre o Estado e o povo. No
primeiro pilar está a conquista do apoio das Forças Armadas, tornando-as
cúmplices do projeto, mas não comandantes dele, diferentemente do que ocorrera
no Brasil no regime fundado em 1964.
Para conseguir isso, usa as benesses dos
cargos e recursos públicos, o aumento do prestígio público - isso explica em
boa medida a escolha do candidato a vice na chapa bolsonarista - e a criação ou
reforço de um inimigo comum - no caso brasileiro, os “comunistas”,
imaginariamente identificados como o PT. Bolsonaro e Chávez buscaram cooptar os
militares para dizer que as armas são o árbitro final do conflito político, e
não juízes ou qualquer ator civil.
A lógica da violência também está presente
na campanha pelo armamento da população civil. Embora o discurso bolsonarista
diga que todo cidadão pode e deve ter sua arma, o foco é o mesmo da Venezuela
de Chávez: aumentar o poderio bélico de indivíduos (lobos solitários) e
milícias favoráveis ao grande líder - ou mito. Neste caso, trata-se não só de
somar o poderio estatal com o de grupos civis, mas também uma forma de seguro
contra uma possível traição dos militares. O pensamento populista autoritário
não confia completamente no Estado e precisa de seguidores extremistas e
fanáticos para pressionar o poder formal.
O incentivo à ação direta e violenta de civis
contra os inimigos é algo que Bolsonaro faz desde o início do seu mandato -
como Chávez também o fizera. Neste sentido, os atentados políticos, como o de
Foz de Iguaçu, uma tragédia terrível, não é a consequência mais grave. O pior
pode vir não com lobos solitários, mas com milícias organizadas que sigam as
ordens do líder máximo. Tais grupos provavelmente terão em suas camisas uma
imagem do presidente fazendo a arminha com a mão.
A rota venezuelana vai além da lógica da
violência e tem como segundo passo estratégico o enfraquecimento e a
desmoralização dos controles democráticos dos governantes. Bolsonaro já
conseguiu dominar completamente ou em boa medida algumas das instituições de
fiscalização, como o Ministério Público Federal. Ainda não chegamos ao modelo
autocrático chavista que hoje vigora sob a regência do presidente Maduro. Isso
se deve principalmente a dois obstáculos: o controle judicial e o social.
No primeiro caso, a grande barreira à
expansão do poder autocrático bolsonarista são o STF e o TSE. Não por acaso, o
presidente brasileiro semanalmente mobiliza seu eleitorado pelas redes sociais
contra os ministros da Suprema Corte. O objetivo é emparedá-los, para que não
tomem nenhuma decisão que possa atrapalhar a reeleição ou adotem um comportamento
neutro frente ao resultado eleitoral. Se houver reação dos juízes, há a ameaça
de ações dos bolsonaristas ou das Forças Armadas contra o sistema eleitoral.
Mesmo que não ocorra efetivamente, essa espada estará sobre a cabeça da cúpula
do Judiciário brasileiro nos próximos meses.
Se conseguir vencer ou dar um golpe contra
o sistema eleitoral, Bolsonaro vai repetir o modelo chavista: irá mudar o
perfil majoritário dos ministros da Suprema Corte. Para construir um modelo
autocrático populista, é preciso que não haja uma maioria de juízes
independentes. Caso seja necessário, será mudado inclusive o tamanho do STF
para gerar uma nova maioria.
O outro controle que é um obstáculo ao
projeto estratégico do bolsonarismo é a sociedade civil independente. Tal como
Chávez, desde o início do mandato há uma guerra aberta entre Bolsonaro e a
imprensa. Para enfrentar isso, em parte apostou-se nas redes sociais, mas houve
também uma cooptação, maior ou menor, de parte dos órgãos de comunicação. De
todo modo, uma parcela importante da mídia não se curvou, e talvez a saída
seja, pela ótica bolsonarista, formas mais severas de intervenção, que sempre
aparecem como ameaças em discursos do próprio presidente da República. Além
disso, há várias outras organizações sociais que são a maior barreira ao
projeto autoritário populista, algumas inclusive com forte conexão
internacional. Qualquer ação mais violenta nesse campo poderá gerar um enorme
isolamento do país, com fortes impactos econômicos.
Dois outros passos estratégicos para a
adoção do modelo chavista são criar uma nova Constituição e obter algum apoio
externo para viabilizar a rota venezuelana. A revisão constitucional já aparece
nas discussões dos grupos bolsonaristas do Telegram e de forma sub-reptícia nos
próprios discursos do presidente. Afinal, o grande inimigo institucional do
atual governo é o pacto social-democrata representado pela Constituição de
1988, que busca evitar a concentração de poderes.
Já o front externo é uma enorme preocupação
dessa via populista autoritária, pois com certeza haverá pressões contra um
golpe institucional no Brasil vindas da Europa e especialmente dos EUA, porque
seria uma enorme derrota para a política externa americana ter uma segunda
Venezuela no continente. Antecipando-se a isso, e percebendo uma possível
mudança geopolítica no mundo, Bolsonaro já escolheu seu protetor: a Rússia de
Putin. Já se ensaiam, inclusive, alguns discursos de cunho antiamericano.
Mas o passo decisivo é o de manter o poder
presidencial a qualquer custo, usando os ensinamentos de Chávez. Há várias
ações possíveis aqui: multiplicar o populismo eleitoral de maneira nunca vista,
gerar uma enorme balbúrdia nas eleições (inclusive com atentados) e, no limite,
usar algum tipo de golpismo para evitar a vitória da oposição. Bolsonaro não
seguirá os manuais democráticos, e embora ele possa fracassar em suas ações,
uma coisa precisa ser dita: o bolsonarismo só perde o controle do poder se
houver um contra-ataque democrático.
O projeto de venezuelização do Brasil não
são favas contadas. Ao contrário, muita coisa pode ser feita para evitá-lo,
unindo partidos, juízes, militares, líderes da sociedade civil, a mídia, a
comunidade internacional e o eleitorado mais pobre do país contra esse projeto
autoritário populista de Bolsonaro. Contudo, é preciso mobilização desde já
contra o golpismo, pois quem acredita que as instituições resolverão por
inércia a situação política não entendeu o momento do país. Afinal, o que vem
por aí será pior do que o atentado político de Foz do Iguaçu.
*Fernando Abrucio, doutor em
ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.
VENEZUELIZANDO O BRASIL!! Excelente texto do colunista!! Há anos Bolsonaro acusa o PT e a Esquerda de quererem transformar o Brasil numa nova Venezuela, mas claramente é o próprio genocida que está tentando fazer isto e na prática já começou a fazê-lo!!
ResponderExcluirA tendência é ir piorando,deixaram o monstro tomar água na lagoa.
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