Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Havia no Brasil uma grande agenda de
modernização pela frente, só que o bolsonarismo interrompeu este processo
civilizatório
O governo Bolsonaro é o casamento do atraso
com a barbárie. Este projeto está levando o país a um enorme retrocesso, que já
pode ser contado em termos de décadas. O Brasil tinha tido vários avanços
institucionais e sociais desde a redemocratização, especialmente com a
Constituição de 1988, mas também por meio de melhorias ocorridas em diversos
mandatos. Ainda havia uma grande agenda de modernização pela frente, só que o
bolsonarismo interrompeu este processo civilizatório e se corre o risco agora
de sobrar apenas um Estado destruído e uma sociedade dominada pela lógica da
violência.
A modernização brasileira ocorreu em
múltiplas dimensões desde o final do regime militar. O primeiro ganho foi
político. O país tornou-se democrático, realizando oito eleições presidenciais
livres e com alternâncias de poder. Houve uma ampliação dos mecanismos de
participação popular e fiscalização dos governantes, de modo que o Estado se
tornou mais aberto à sociedade e transparente. A democracia brasileira tinha
ganhado uma forma inédita, pois escolhia livremente os seus representantes por
um método limpo de seleção e podia controlá-los para evitar o arbítrio, o pior
dos males de qualquer regime político.
O segundo ganho desse processo civilizatório foi social. Houve enormes avanços em indicadores de saúde, num país historicamente marcado pela desassistência aos mais pobres, especialmente as crianças, mulheres e idosos. Sinal disso foi a melhora substancial nas taxas de mortalidade infantil, expectativa de vida, saúde materna, entre outros.
Tão ou mais expressivo foram as conquistas
educacionais, uma vez que antes da Constituição de 1988 boa parte da população
infantil e juvenil estava fora da escola ou era expulsa dela ao longo dos anos.
O conjunto dos mais vulneráveis começou a completar o ensino fundamental e
chegar ao ensino médio, coisa muito rara até a década de 1980.
A inclusão chegou a grupos como as pessoas
com deficiência e fez-se uso de políticas afirmativas no acesso à universidade,
gerando a primeira geração de negras e negros que em larga escala podem ocupar
empregos e lideranças dos quais foram alijados desde o final da escravidão.
A redução da miserabilidade foi outra
conquista social significativa. O Brasil reduziu em duas décadas a fome, que
era endêmica no país, e o percentual de pessoas em situação de pobreza
absoluta. Políticas como o Plano Real, o Bolsa Família, o BPC, o crescimento
dos equipamentos da assistência social, entre os principais fatores, foram
essenciais neste processo civilizatório, ao que se soma uma maior articulação
do Estado com a sociedade e do governo federal com as prefeituras.
No campo econômico os avanços foram
menores, mas não podem ser desprezados. Em primeiro lugar, o país foi, pouco a
pouco, até a rebelião do Centrão, arrumando o orçamento público. Os gastos até
o regime militar tinham poucas amarras institucionais e se podia ter,
inclusive, orçamentos paralelos como a Conta Movimento do Banco do Brasil -
imagine se o presidente Bolsonaro pudesse hoje utilizar esse tipo de recurso,
que provavelmente ainda seria secreto por 100 anos...
Muitas reformas institucionais das contas
públicas foram feitas e pouca gente lembra disso hoje. Tudo isso foi relevante
para o combate à inflação, uma praga que assolou o Brasil por mais de 20 anos.
Houve sim alguns sobressaltos depois do Plano Real, mas de magnitude bem menor
do que na época áurea de instabilidade. Também ocorreram modernizações no campo
das concessões, das privatizações, da legislação de parceria público-privado,
da regulamentação do crédito e mais recentemente com a Lei das Estatais.
O maior problema dessa era de reformas foi,
sem dúvida alguma, a combinação de crescimento econômico com garantia de
emprego de qualidade. É verdade que em certos momentos conseguiu-se esse
resultado virtuoso, com mais vigor durante quase dez anos desse século
(2004-2013), que foi um período áureo de ascensão social mais ampla no Brasil.
Entretanto, esses espasmos não foram suficientes para gerar um ciclo duradouro
de desenvolvimento.
Boa parte dos analistas debita os fracassos
da redemocratização ao pacto dos governantes eleitos com o atraso, representado
não só por congressistas geralmente vinculados ao Centrão, mas também por
grupos sociais e econômicos que parasitam o Estado.
Essa visão ajuda a entender a manutenção de
proteções e privilégios, a continuidade de bolsões de clientelismo e corrupção,
a ausência de reformas em áreas estratégicas. Porém, pelo menos desde Itamar
Franco e ao longo da era tucano-petista, os governos tinham, com maior ou menor
sucesso, uma perspectiva de modernização do país, de modo que procuravam
barganhar com os setores atrasados, mas lutavam para não ser comandados por
eles.
Bolsonaro acabou com essa era de
modernização fazendo um casamento perverso entre o atraso e a barbárie. A
junção com o patrimonialismo arcaico (e arcaizante) tem seu símbolo máximo na
aliança com o Centrão, numa mistura diferente das anteriores por duas razões.
A primeira é que o comando da pauta
legislativa e do orçamento livre foi dado integralmente ao presidente da
Câmara, Arthur Lira. Nem FHC, nem Lula e mesmo Temer, que deu os primeiros
passos neste sentido, não chegaram nunca a esse ponto. Lira manda e desmanda na
República como nem Eduardo Cunha conseguira.
Ele pula todos os ritos processuais básicos
da democracia para aprovar temas de interesse comum para a reeleição de seus
pares e do presidente da República, recebendo de presente a chave de um cofre
com mais de R$ 30 bilhões - um valor anual maior do que dez anos de petrolão!
Mas é a segunda especificidade do pacto
macabro de Bolsonaro com o Centrão a mais relevante. Essa aliança tem gerado
uma enorme desestruturação do Estado brasileiro, num processo de
enfraquecimento de políticas públicas vitais como saúde, educação, meio
ambiente e direitos humanos, além de desinstitucionalizar regras básicas de governança
das instituições democráticas. O cenário é de terra arrasada, com a Federação
vilipendiada, o sistema de controle dominado ou colocado sob fogo cruzado, a
politização e redução da autonomia da burocracia federal e um aumento
descomunal da opacidade dos atos governamentais.
O desespero em relação à reeleição
presidencial levou a um comportamento ainda mais predatório na busca por
recursos públicos. Lira e Bolsonaro perderam qualquer pudor que porventura
tivessem e não estão se importando se vão quebrar e destruir o Estado.
Vão tirar dinheiro dos estados, dos
municípios, da educação, da saúde, da segurança pública, da Eletrobras vendida,
do BNDES e de onde mais for possível, inclusive descumprindo a legislação
eleitoral. A aliança com o atraso chegou ao seu ponto máximo: não há mais
modernização possível enquanto estiverem juntos os atores principais da novela
bolsonarista.
O mais impressionante é que o pacto macabro
com o atraso não é a pior característica do bolsonarismo. O seu caminho
orientador é alimentar a barbárie na sociedade. Isso passa tanto pelo apoio a
soluções violentas frente aos conflitos públicos, como pela disseminação do
ódio contra grupos e atores sociais considerados inimigos.
Daí o apoio a garimpeiros ilegais que
destroem a Amazônia e assassinam seus defensores, a haters misóginos e racistas
da internet, a juízes e ocupantes de cargos públicos que pregam a desobediência
às leis em nome da pureza moral, a políticos que defendem a repressão da
criminalidade matando indiscriminadamente os pobres e pretos, a pastores de
araque que saqueiam o orçamento público tirando dinheiro das crianças e jovens
que ficaram sem educação remota por quase dois anos.
Essa selvageria é o núcleo das ideias de
Bolsonaro, e o atraso trazido pelo Centrão é apenas um meio para se garantir o
poder de disseminação da barbárie. Na verdade, ter mais dinheiro para jogar
pelo helicóptero por alguns meses, procurando eleitores que aceitem migalhas, é
um instrumento secundário na lógica política bolsonarista. O discurso principal
não será esse. O radicalismo será a tônica da campanha de reeleição, e os
coronéis da política, sempre patrimonialistas, mas geralmente moderados, foram
engolidos, inadvertidamente ou não, pelo bolsonarismo.
Agora, o Centrão estará ao lado de um
palanque que defende a humilhação e a violência contra crianças e mulheres
estupradas, o assassinato dos muitos heróis como Marielle, Dom e Bruno que
defendem os mais vulneráveis, o desprezo em relação aos indígenas e negros, a
falta de empatia com os mortos pela covid-19.
Toda vez que um político aliado de Lira -
ou ele próprio - for pedir voto, poderá ser lembrado dos vários episódios nos
quais o bolsonarismo espalhou o ódio e a violência contra os mais diversos
grupos sociais. O peso negativo de curto prazo do apoio de Bolsonaro pode estar
mais na economia, mas essa companhia pode afetar mais profundamente a imagem
dos políticos tradicionais.
De todo modo, a manutenção do casamento do
atraso com a barbárie torna impossível o retorno ao caminho da modernização do
país. É preciso que a sociedade brasileira perceba logo isso, antes que a
lógica da violência bolsonarista enterre qualquer possibilidade civilizatória.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.
Perfeita a análise do colunista! Parabéns!
ResponderExcluirDisse tudo e mais um pouco,excelente artigo!
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