Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Garimpo, madeireiros, pesca, invasão de
terras indígenas, grilagem e devastação ambiental são indicações de que o
Estado pode ter perdido o controle de uma parte do território
O assassinato do indigenista Bruno Araújo Pereira
e do jornalista Dom Phillips mostrou-nos que, na estrutura social e política da
sociedade brasileira, transformados, persistem dois Brasis. O Brasil legal, que
é aquele em que supomos viver e do qual supomos ser cidadãos, e o Brasil
paralelo e clandestino, das formas disfarçadas de violação das leis e de
minimização adaptativa das instituições aos requisitos de preservação e
reprodução do atraso.
As eleições de 2018 acordaram e deram força
ao Brasil retrógrado e sobrevivente de todos os nossos atrasos acumulados e
represados desde as escravidões, a indígena formalmente encerrada em 1755 e a
africana, em 1888. Esse Brasil acordou pós-moderno, na definição de Néstor
García Canclini, sem moderno ter sido.
Arcaica concepção de poder e cômica tirania desenham um modelo de atraso lucrativo, o do poder pessoal e dos misticismos híbridos que desaguaram nas seitas e religiões de negócio. Nossas misérias se juntaram numa conspiração alienadora para usurpar o direito de expressão democrática do povo.
Eleitos e não eleitos, toscos, sem
discernimento democrático, entenderam que bastava fazer o contrário do
institucionalizado para que um projeto político de direita se definisse. Para
devolver o Brasil aos órfãos do protagonismo da ditadura militar e da violência
ditatorial lucrativas. Na lógica política invertida, o novo autoritarismo
brasileiro, de moto ou a cavalo, pela violação de princípios e valores,
desmontaria o Brasil da Constituição de 1988.
É esse o Brasil das concepções e ações
residuais que não se enquadram nos padrões e valores da civilização, que trata
os brasileiros de verdade e de direito como estrangeiros e inimigos. Esse
Brasil paralelo já se tornou uma outra sociedade e já declarou guerra ao Brasil
constitucional. Os dois mortos são vítimas dessa guerra e se juntam a um
extenso número de cidadãos de bem vitimados pela morte ou por uma variedade de
formas de violência simplesmente porque eram o que eram ou são o que são.
A declaração de que uma das vítimas era
malvista na região em que os dois foram mortos e, portanto, não devia estar lá,
vários jornalistas destacaram, foi interpretada como um ato de legitimação de
que vasta área do território brasileiro é tutelada por gentes que não
representam o Brasil oficial.
Os envolvidos em atividades econômicas ilegais:
garimpo, madeireiros, pesca e, também, invasão de terras indígenas, grilagem e
devastação ambiental, são indicações de que o Estado brasileiro pode ter
perdido o controle de uma parte do território nacional. É ali cerceado e
sobrepujado por poderes antagônicos aos da defesa nacional, inspirados e
motivados pelos lucros ilegais da pirataria e do saque da nação.
Falou-se na possibilidade de existirem
mandantes do crime. E depressa demais a polícia descartou essa hipótese, antes
mesmo de localizar e deter todos os suspeitos e realizar as investigações
necessárias. Talvez mandante nem exista e quem agiu o fez induzido por outros
estímulos e certezas. Territórios e situações anômalas de poder paralelo, no
Brasil, não só os da Amazônia e não só rurais, também em grandes cidades, são
aqueles de presença de indivíduos espontaneamente agentes de uma suposta
vontade dos donos do poder.
Aquela reunião do governo, de 22 de abril
de 2020, em que o ministro do Meio Ambiente se referiu à mídia distraída com a
pandemia de covid como fator propício a deixar passar a boiada de ações do
governo que eram consideradas impróprias e ilegais, diante do silêncio do
presidente, do vice, dos ministros, foi do tipo a induzir essas populações
envolvidas com a economia clandestina a acreditar que o atual governo é seu
aliado.
A apologia do uso de armas como instrumento
de uma concepção antissocial de liberdade individual e de um presumível direito
à violência, paralelo ao Estado, na questão da ordem, o favorecimento da compra
de armas e de munição, as falas belicosas frequentes, a satanização das
instituições, especialmente a Justiça, como inimigas de uma equivocada
concepção de poder do presidente da República, tudo isso legitima a violência
privada e autoriza a prática de ações que, à luz das regras do Brasil legal,
são crimes.
As irracionalidades, desconstrutivas da
organização política da sociedade brasileira, explodem todos os dias diante de
todos. Tão acostumados estamos com elas, que mal notamos o que acontece em
detrimento de todos nós enquanto brasileiros. São irracionalidades reveladoras
do que somos e dos nossos limites como nação.
As eleições deste ano são mais do que
confronto entre blocos ideológicos. Evidenciam cansaço. Há nelas um profético
retorno à terra prometida.
*José de Souza Martins foi professor titular de sociologia na Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94).Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "Sociologia do desconhecimento Ensaios sobre a incerteza do instante" (Editora Unesp, 2021).
O Brasil recuou até a idade das trevas.
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