Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Biografia mostra de forma didática e
crítica a dinâmica do entrelaçamento da pensadora com os fatos históricos do
século passado
Nascida em 1906 e falecida em 1975, Hannah
Arendt é certamente uma daquelas figuras intelectuais que são mais famosas (ou
conhecidas) do que efetivamente lidas. O recente livro de Samantha Rose Hill -
originalmente de 2021 - tem o mérito de apresentar e analisar vida e obra de
Arendt, mostrando de forma didática e crítica a dinâmica de seu entrelaçamento
com os fatos históricos do século passado.
A atividade do pensamento e a experiência
cotidiana são inseparáveis em Arendt, que teve sua vida e seu trabalho marcados
desde cedo pelas turbulências sociais da primeira metade do século XX.
Criada em uma família com sólida
consciência política, Arendt foi expulsa do colégio aos 14 anos por liderar um
protesto contra um professor. Em 1933, morando em Berlim, transforma sua casa
em parada clandestina para ajudar os comunistas que fugiam do país por conta da
ascensão de Hitler.
Nesse mesmo ano foi presa pela Gestapo por
atividade suspeita na Biblioteca do Estado Prussiano: um funcionário a denunciou
por causa da quantidade de jornais que solicitava - Arendt montava uma coleção
de propaganda antissemita para documentação e envio ao exterior.
Muitos anos depois, em uma entrevista, Arendt comenta que teve muita sorte nessa ocasião. “Eu deixei a prisão depois de oito dias porque fiquei amiga do oficial que me prendeu”, diz ela, comentando que ele “havia sido promovido da polícia criminal para uma divisão política” e que “não tinha ideia do que fazer”. Depois disso, foge para Paris, aprende francês e hebraico, trabalhando em uma organização que ajuda jovens judeus a emigrarem para a Palestina.
Em 1940, contudo, o governo francês impõe o
internamento dos cidadãos alemães, e Arendt deve ir ao campo de Gurs, onde
ficou por cinco semanas até participar de uma fuga em massa. Mais uma vez ela
tem sorte, como revela em um texto de 1962: “Algumas semanas após a nossa
chegada no campo, a França foi derrotada e todas as comunicações cessaram. No
caos resultante, tivemos sucesso em obter papéis de liberação com os quais
pudemos sair do campo”.
Ela consegue emigrar para os Estados Unidos
em 1941, via Lisboa, mas de novo por um triz. Esperando documentos em Marselha,
Arendt e o marido, Heinrich Blücher, recebem o recado de que devem comparecer à
recepção do hotel - provavelmente um truque da polícia. Blücher desce, deixa as
chaves e sai antes que alguém possa interceptá-lo; pouco depois, Arendt faz o
mesmo, e horas depois eles deixam a cidade.
Do outro lado do oceano, Arendt começa a
trabalhar como empregada doméstica para aprender inglês: entre julho e agosto
de 1941 trabalha para a família Giduz em Winchester, norte de Boston. “As
primeiras experiências de Arendt na casa dos Giduz”, escreve Hill, “exerceram
uma duradoura influência no seu entendimento da política americana”.
A partir daí, Arendt vai aos poucos
estabelecendo contatos e marcando sua presença no meio editorial e
universitário, contribuindo com textos para publicações diversas e organizando
as ideias para aqueles que serão seus primeiros livros de destaque, “Origens do
totalitarismo” (1951), “Entre o passado e o futuro” (1954) e “A condição
humana” (1958).
Arendt cresce e atinge a maturidade em um
mundo confuso e incerto - a Primeira Guerra Mundial, as revoluções, a inflação
-, sem imaginar que o ponto mais trágico ainda estava por ser alcançado; os
anos posteriores, de sua consagração, foram em grande medida marcados pelo
esforço de elaboração dessa sucessão de eventos traumáticos.
Um dos pontos principais destacados por
Samantha Rose Hill é que Arendt sempre buscou fundamentar - política e
filosoficamente - a possibilidade do diálogo. Defendia que as mudanças sociais
devem partir de baixo, a partir do debate entre as pessoas, da conversa franca
e tolerante entre indivíduos, e não do alto, a partir de leis instauradas pelo
governo. Por outro lado, essa abertura às ideias alheias é também decisiva para
a vida interior.
“Em ‘A vida do espírito’ - livro que Arendt
começou a escrever em 1968 -, ela discute o diálogo de ‘dois-em-um’, isto é, o
diálogo interno que alguém tem consigo mesmo”, aponta Hill. “Arendt argumentava
que, ao pensar, ninguém nunca está realmente sozinho.”
A autora de “Homens em tempos sombrios”
defendia que uma pessoa não pode decidir sua identidade por conta própria:
trata-se de algo que só se revela a partir das palavras e ações na esfera
pública dos assuntos humanos. Arendt aplicou essa hipótese na prática,
transformando-se continuamente - daí a relevância de um livro que rastreia com
cuidado seu percurso.
Hill afirma que ela “não foi uma jornalista, crítica, ensaísta, resenhista, editora ou ativista política, embora também tenha dedicado parte da vida dela a essas atividades”; foi, talvez, “uma pensadora poética sem haver sido uma poeta”. A única certeza é que a variedade de posições faz a obra de Arendt relevante ainda hoje, quase 50 anos após sua morte.
*Kelvin Falcão Klein é
crítico literário e professor de literatura da Unirio
Hannah Arendt
Samantha Rose Hill, Trad.: Juliana de Albuquerque, Contracorrente R$ 82,50
Não sabia que tivesse morrido há tanto tempo!
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