Folha de S. Paulo / Ilustríssima
José Bonifácio, patriarca da Independência
e membro da elite letrada do país, ficou conhecido pela defesa de suas ideias,
que o alçaram a altos patamares, como ministro e tutor do jovem d. Pedro 2º, e
o levaram a um fim dramático, em prisão domiciliar. A mestiçagem e a abolição
gradual da escravidão, mediada e regulada pelo governo, eram pilares que ele
julgava fundamentais para a construção da nação brasileira.
Súdito do império
português nascido em sua porção americana, José
Bonifácio de Andrada e Silva viveu em um mundo em
transformação que abria diferentes possibilidades para conceber
e implementar reformas políticas e sociais. Não queria, a princípio, a independência.
Defendia um império
luso-brasileiro renovado por mudanças estruturais, no reino e na
colônia, que o conduzissem para o que se afigurava ser uma nova era.
Nasceu em Santos, na capitania de São
Paulo, em 1763, e passou a maior parte da sua vida adulta na Europa. Como
muitos filhos da elite colonial, embarcou para Portugal aos
20 anos para estudar na Universidade de Coimbra, mas, ao contrário da maioria,
só retornou ao Brasil com 56 anos.
Cursou a Faculdade de Direito, como era
usual entre os jovens vindos da América, e a Faculdade de Filosofia, que
incluía o estudo das ciências naturais. Especializou-se em mineralogia, campo
que incorporava geologia, química e metalurgia, atividades essenciais no
contexto do desenvolvimento da indústria da época.
Formado na Ilustração, acreditava no poder da razão e do conhecimento científico para moldar os homens e seu meio. Por isso, ao seu ver, o cientista não poderia ficar preso em seu gabinete, envolto em livros e absorto em teorias, mas deveria se dedicar à resolução dos problemas que afligiam a sociedade e obstruíam o progresso material.
José Bonifácio fazia parte do grupo de
letrados portugueses reunidos na Academia das Ciências de Lisboa que, sob a
liderança de dom Rodrigo de Souza Coutinho, ministro de
dom João, se empenhou em desenhar políticas para a modernização da
economia.
A partir de 1801, dez anos depois de uma
viagem de estudos por vários países europeus, recebeu de dom Rodrigo a
incumbência de ocupar diversos cargos públicos, de modo que o mineralogista
pudesse converter seu saber em políticas concretas. Procurou dinamizar a
exploração de carvão, a fundição de ferro e outras atividades que estimulassem
a manufatura. Foi também responsável por criar a cadeira de metalurgia na Universidade
de Coimbra.
Sua vida seria alterada com a invasão
de Portugal pela França em 1807, resultado da guerra entre franceses
e ingleses, dos quais Portugal era aliado. A Corte fugiu para o Brasil, e
Bonifácio permaneceu no reino para lutar contra os invasores.
Vencidos os franceses em 1810, demorou-se
ainda alguns anos em Lisboa. Porém, expressava profundo desgosto e desilusão
por ver seus esforços, no exercício dos cargos que ocupava, frustrados por
seguidos entraves burocráticos. Era a hora de se aposentar e voltar à terra
natal.
Encontrou um
Brasil diferente quando chegou em 1819. Com a vinda da Corte, o Rio
de Janeiro foi elevado à capital do império lusitano e o Brasil não era mais
colônia —adquirira o estatuto de reino, o mesmo de Portugal. A intenção de
Bonifácio era se retirar da vida pública. No entanto, em 1820, a revolução
constitucionalista do Porto o impeliu para a política.
Os revoltosos exigiam a transferência da
Coroa para Portugal e a instauração de uma monarquia constitucional. Com esse
fim, convocaram as Cortes, assembleia que deveria escrever a Constituição do
novo regime. As províncias da América elegeram seus deputados. O liberalismo
unia os portugueses dos dois lados do Atlântico e inaugurava um novo tempo.
Bonifácio participou desses acontecimentos
em São Paulo. Não se candidatou a deputado, mas escreveu uma espécie de
programa para orientar os representantes paulistas na sua atuação nas Cortes.
Nele, defendia o império luso-americano.
O Brasil permaneceria subordinado a Lisboa,
mas contaria com um governo autônomo para tomar as decisões referentes à
América. Sua direção caberia ao herdeiro do trono, dom Pedro, tornado príncipe
regente depois que o rei dom João 6º obedeceu às ordens dos rebeldes vitoriosos
e voltou a Portugal.
O cenário, contudo, foi de disputa. Os
portugueses do reino não aceitavam a autonomia pretendida pelos brasileiros.
Insistiam no retorno de dom Pedro a Lisboa e no desmonte das instituições
instaladas no Rio de Janeiro quando para lá se transferiu a Coroa lusitana.
Em reação, setores da elite
luso-brasileira, entre eles Bonifácio, se
articularam em um movimento que reivindicava a permanência do príncipe,
estabelecendo com ele uma aliança em nome de objetivos comuns: impedir que a
América portuguesa seguisse o exemplo de seus vizinhos que optaram pela
independência e assegurar sua unidade diante do perigo de fragmentação
territorial.
Para Bonifácio, isso significava ainda
garantir as condições para a adoção das reformas que defendia. Dom Pedro
permaneceu no Rio de Janeiro e, em janeiro de 1822, nomeou Bonifácio ministro
do Reino e Estrangeiros.
Diante da intransigência das Cortes, dom
Pedro e Bonifácio caminharam
juntos para a Independência, que passou a ser uma alternativa
concreta em agosto daquele ano. Ele estava no centro das articulações que
levaram à ruptura com a metrópole, atuando para que todo o território da
América portuguesa fosse integrado em um novo país, o que incluiu
o envio de tropas para províncias que resistiam a aderir ao Rio de Janeiro.
A Independência trazia consigo o desafio de
construir um Estado e uma nação. Não havia, entretanto, consenso
entre aqueles que estavam à frente desse processo sobre o perfil das
instituições a serem organizadas, do país a ser constituído, do tipo de
sociedade que deveria prevalecer.
Concordavam com a adoção de um regime
liberal, com separação entre os Poderes, eleição de representantes para o
Parlamento, súditos que se transformariam em cidadãos portadores de direitos
individuais e políticos. Como, no entanto, materializar esse regime em uma
sociedade escravista e marcada por uma profunda hierarquia social?
Bonifácio acreditava ter a resposta com seu
projeto nacional, uma renovação profunda a ser conduzida pelo governo com o
objetivo de civilizar uma população que, para ele, estava imersa na barbárie.
Ele pretendeu amalgamar os metais de que dispunha em seu laboratório social
para obter a têmpera de uma nação europeizada.
A natureza e a história forneceriam os
elementos necessários, bastando os instrumentos da razão e do saber, postos a
serviço do poder forjador do Estado, para sua transmutação em metal nobre. O
Estado, em sua visão, seria o agente que, de cima para baixo, irradiaria essas
mudanças. Por essa razão, a monarquia
constitucional que defendia era altamente centralizada, com um
Executivo forte e capaz de implementar as reformas que tornariam o país viável.
Não só o povo deveria ser civilizado antes
de poder ser senhor de si, mas também a elite branca, por viver da
exploração de escravizados.
Dela, resultava a violência, o ócio e o
isolamento que marcavam o cotidiano dos grandes proprietários, incapacitados,
portanto, para o exercício da cidadania e do compromisso com o bem comum. Em
razão da escravidão, aferravam-se ainda a práticas agrícolas tradicionais, com
a devastação das matas que empobrecia os recursos naturais, e resistiam à
modernização das técnicas utilizadas na agricultura.
As medidas que deveriam ser adotadas eram
radicais: abolir a escravidão, integrar o indígena, disseminar a educação
e promover a
mestiçagem. Todas visavam criar um povo homogêneo, a única forma de
gerar um sentimento nacional e a aptidão para a cidadania.
Por meio da mestiçagem, surgiria uma nova
raça com um repertório comum, moldado pela educação, meio para que a massa
miscigenada adquirisse os valores, os costumes e os hábitos dos povos cultos.
Os brancos teriam contribuição fundamental nesse projeto, ao inocular o sangue
europeu na mistura que também seria cultural.
O pressuposto de Bonifácio era que todos os
homens tinham capacidade intrínseca para alcançar o estágio superior que
idealizava, inclusive os negros e os indígenas, mas só se tivessem condições de
vida que propiciassem o desenvolvimento de suas potencialidades.
Por isso, era imperativo emancipar os
negros e integrar os indígenas "selvagens". Os primeiros, em razão da
escravidão, eram refratários a uma civilização da qual só conheciam o trabalho
excessivo e o açoite. O negro africano era, assim, um bárbaro em terras
brasileiras, não por sua natureza, mas por ser escravo. Era a escravidão que o
barbarizava, não sua origem, cor ou raça.
Além de empecilho para o exercício pleno da
cidadania por negros e brancos, a escravidão ainda representava um permanente
perigo para a manutenção da ordem. Bonifácio alertava para o risco de manter
uma parcela da população em situação de inimiga interna, já que escravizada. Em
vez de inimigos, seriam alçados a cidadãos, reconhecendo, dessa forma, o Estado
e o pertencimento à nação brasileira.
A principal beneficiária seria, afinal, a
própria aristocracia dirigente. No entanto, não era suficiente libertar os
escravos: era preciso que o governo tomasse para si a tarefa de integrá-los à
sociedade, fornecendo-lhes terras, o que lhes proveria meios de subsistência.
Nenhum bem resultaria se os negros fossem
simplesmente abandonados à própria sorte. Na visão de Bonifácio, a profunda
hierarquia social seria preservada dessa forma, porque educação e meios de
subsistência seriam distribuídos na medida certa para converter ex-escravizados
em trabalhadores disciplinados.
Bonifácio era uma exceção no seio do grupo
dirigente, e suas convicções reformistas atraíram uma oposição feroz a ele. Em
julho de 1823, foi demitido do ministério em função das desavenças com aqueles
que disputavam o poder e o programa de nação.
Assumiu, então, sua cadeira de deputado na
Assembleia Constituinte, que se
reunira em março de 1823 para escrever a Constituição brasileira, e
apresentou um projeto de lei, propondo o fim
do tráfico negreiro e a abolição gradual da escravidão. Enquanto a
emancipação não ocorria, caberia ao governo mediar a relação entre senhores e
escravos, regulando-a de modo a retirar do primeiro o pleno arbítrio sobre a
vida de seus cativos. Essa mediação, por si só, já seria uma novidade.
Os artigos da lei que apresentou
estipulavam normas para reger o trabalho dos negros então escravizados, com
restrições à exploração de menores e mulheres, determinação da jornada de
trabalho e previsão de fornecimento de alimentação e vestuários adequados pelos
senhores.
Além disso, Bonifácio prescrevia medidas
paliativas, para diminuir o risco de revoltas e preparar os escravizados para
serem livros no futuro, e que ficaria a cargo do poder público, não mais dos
senhores, o julgamento e a punição de infratores.
Porém, antes que o projeto entrasse em
discussão e que a Constituição fosse promulgada, dom Pedro fechou a
Constituinte, em novembro de 1823. Bonifácio foi condenado ao exílio na França,
onde amargou sua derrota.
Para ele, haviam sido derrotados tanto o regime
liberal, com a outorga de uma Constituição pelo imperador em 1824, quanto seu
projeto nacional, com a continuidade da ordem escravista.
De volta ao Brasil anos depois, Bonifácio
obteve certo protagonismo ao ser nomeado tutor de dom Pedro 2º, depois da
abdicação do pai, em 1831. Mais uma vez, sofreu forte oposição de políticos que
não concebiam que o jovem imperador fosse formado pelas ideias reformistas de
Bonifácio. Destituído da tutoria em dezembro de 1833, foi colocado em prisão
domiciliar em Paquetá e morreu em 1838.
A maior ilusão de Bonifácio foi, talvez, a
volúpia voluntarista que o fez acreditar que o homem poderia escrever o futuro
segundo exclusivamente sua vontade. Ele sabia, por outro lado, que não podia
prescindir do apoio daqueles que compartilhassem sua visão ilustrada e tentou
convencer a elite brasileira do que seriam seus reais interesses: aceitar o fim
da escravidão e integrar os negros à sociedade para garantir a ordem, tendo na
base da hierarquia social uma população homogênea e devidamente instruída.
Bonifácio falava aos grupos dominantes e só
poderia ter sido bem-sucedido se contasse com a adesão de seus pares, mas
encontrou uma forte resistência da elite, que não estava disposta a pagar o
preço das reformas que supostamente a beneficiariam.
A alternativa que restava era inconcebível
para um membro da elite branca brasileira do século 19: a mobilização de
parcelas da população excluídas do poder. Ele acreditou ser possível
transformações de fundo, econômicas e sociais, por meio de um projeto político
que não era capaz de incorporar como agentes efetivos os diferentes setores de
uma população heterogênea. Acabou derrotado.
*Professora do Departamento de História da
USP e pesquisadora do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento).
Autora, entre outros livros, de "História do Brasil Império" e
"José Bonifácio”.
Artigo SENSACIONAL!! Parabéns à autora e ao blog que o divulga!
ResponderExcluirUm homem descolado de seu tempo.
ResponderExcluirA classe dominante brasileira, segundo Darcy Ribeiro, sempre foi a mais competente do mundo em matéria de explorar seu próprio povo. Os descendentes dos capitães hereditários teriam que libertar os escravos e fazer uma reforma agrária que contemplasse os ex-escravos com terras. Mas eles queriam ser indenizados pela perda dos escravos que eles haviam comprado. Imagine uma reforma agrária. O Estado teria que pagar pelos escravos e mais por qualquer nesga de terra que fosse destinada aos negros. Postos em liberdade com uma mão na frente e outra atrás, os negros foram se amontoar nos morros que no século XIX eram chamados de "bairros africanos". Ou seja a miscigenação brasileira foi obra do próprio povo que não tem preconceito quando o assunto é fazer amor. O único projeto de nossa classe dominante que vingou foi ter montado o apartheid social vigente em nosso país dividido desde sempre em ladrões bilionários e o povo roubado dividido em favelados e moradores de rua. E para dar continuidade a esse quadro no qual o crime organizado já domina grande parte da pirâmide. Nossa burguesia está apostando suas fichas numa caricatura do que seria o IV Reich. O candidato caricato (com rima e tudo) a Fuher nós já temos.
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