Folha de S. Paulo
Tudo é efeito da exaustão de instituições
democráticas, em meio ao turbilhão mundial de mudanças
Em entrevista bem ponderada, um pastor
evangélico fez raro diagnóstico de "apodrecimento da política e da
religião". Há, de fato, um momento em que toda forma de poder, benigna ou
maligna, começa a definhar. Para o primeiro tipo, o sociólogo russo Pitirim
Sorokin, fundador do departamento de sociologia de Harvard, concebeu a hipótese
da "saturação", ou seja, de esgotamento das possibilidades históricas
de uma forma social. O segundo diz respeito às formas autocráticas, que
atropelam a normalidade das instituições sociais.
É possível, assim, falar de saturação das formas canônicas da democracia representativa ou, noutro plano, de uma fórmula anteriormente consagrada da indústria cultural. A televisão e as revistas semanais coloridas fornecem um bom exemplo. Nas décadas de 1960 e 1970, as revistas prosperaram em termos de audiência e publicidade até a inevitável saturação frente aos atrativos da televisão que, por sua vez, também tenta hoje contornar com "remakes" de sucesso o enfartamento das telenovelas. Esse é um fenômeno razoavelmente normal, dentro do escopo teórico de Sorokin.
Agora, fala-se publicamente de algo além do mero saturado, que é o podre. A
fala do pastor foi explícita, mas referências e adjetivos de formadores de
opinião revelam ampla percepção do apodrecimento cognitivo nos comportamentos
públicos, de que acaba de dar mostra à
diplomacia estrangeira o presidente da República. Além disso, porém,
é o próprio tecido coesivo de instituições, no âmbito da religião e da
política. Basta ver a sanha autodestrutiva da elite política, que oscila entre
o espúrio e o escatológico. Ou então, as "igrejas" que se multiplicam
como vírus ou filiais de comércio umas das outras, amealhando o máximo da renda
mínima de legiões de incautos. É como se houvesse septicemia da dignidade
pessoal e coletiva.
Numa perspectiva global, isso tudo é efeito da exaustão de instituições
democráticas, em meio ao turbilhão mundial de mudanças. São diversos, porém, os
níveis regionais do fenômeno. O que dá margem à "teoria da flor
frágil", a ideia do sociólogo Anthony
Giddens de que a democracia não pode crescer em terreno
superficial, pois suas raízes dependem de solo profundo e de acumulação de
cultura cívica. Seria o tipo de crescimento que Gramsci identificou como
"ocidentalização" da sociedade civil, do qual se viram entre nós
alguns sinais com o fim da ditadura militar.
Só que a política já saturada foi incapaz de perceber outro tipo de
sedimentação, a do Mal, solo da atual variante "transgênica" entre o
perverso e o asqueroso. Assim chegamos ao auge: não só as coisas, mas também um
certo substrato humano está indo pelo ralo, além da saturação e apodrecendo a
inferno aberto, como esgoto não tratado.
*Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de "A Sociedade Incivil" e "Pensar Nagô".
O Brasil virou um esgoto a céu aberto mesmo.
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