Naief Haddad / Folha de S. Paulo
Filósofo criou a Lei Rouanet e teve como
uma produção intelectual de alto nível seu modo de responder às críticas
Em 2012, pouco mais de vinte anos depois da
criação da Lei de Incentivo à Cultura no Brasil, o filósofo e diplomata
carioca Sergio
Paulo Rouanet deu
uma entrevista de tom amargo à Folha sobre sua passagem pela
administração pública.
Afirmou que seu período como secretário de
Cultura no governo Fernando
Collor (1990-1992), no qual implantou a lei que se tornou famosa com
seu sobrenome, havia sido um "equívoco". Disse também que o mecanismo
era uma "página virada" para ele.
Rouanet conversou com o jornal depois de
uma palestra em São Paulo. Encerrada a fala em um ciclo de conferências no Sesc
Vila Mariana e antes que a entrevista começasse, o ensaísta foi abordado por
duas mulheres. Graças à lei, disseram, elas conseguiam manter um projeto sobre
memória.
Rouanet respondeu: "Acho que o grande complexo de inferioridade do intelectual é o de se sentir inútil. Quando um intelectual consegue fazer coisas úteis, e acho que consegui fazê-las, isso dá uma grande alegria. Me sinto muito feliz."
Embora sempre resistisse a falar sobre a
lei para a imprensa, o intelectual, morto
neste domingo (3) aos 88 anos, sabia da relevância do mecanismo.
São escassas as boas lembranças deixadas
pelos anos Collor. A homologação da Terra Indígena Yanomami, em 1992, é uma
delas. Outra é a Lei de Incentivo à Cultura lançada por Rouanet, que assumiu a
pasta depois da gestão desastrosa de Ipojuca Pontes.
A partir de então, o governo
passou a autorizar empresas e pessoas físicas a descontar do Imposto de Renda
valores diretamente repassados a iniciativas culturais, como produção de
livros, preservação de patrimônios históricos e peças de teatro.
Certamente havia falhas no projeto, que se
tornaram evidentes com o correr do tempo. A concentração de iniciativas em
cidades como São Paulo e Rio de Janeiro estava entre elas. Rouanet estava
ciente da necessidade de aprimoramentos no mecanismo, tarefa que deveria ter
sido levada adiante pelas gestões posteriores –não foi a contento.
Não se deve negar à Lei Rouanet, porém, o papel
de ponto de partida positivo como estímulo financeiro para a realização de
projetos artísticos, uma proeza naquelas circunstâncias.
Com a ascensão das novas direitas,
sobretudo a partir de 2015, o mecanismo passou cada vez mais a ser visto como
sinônimo de mamata. Com Jair
Bolsonaro no Planalto, a partir de 2019, Lei Rouanet ganhou
definitivamente a carga de palavrão entre aqueles que não conheciam a gênese e
os propósitos do projeto. Ou fingem não conhecê-las.
É uma lástima que Rouanet tenha morrido em
uma época na qual seu nome é usado porcamente para alimentar o submundo da
política. Ele nunca respondeu a essa turma. Ou, pensando bem, respondeu, sim,
mas quase sempre de modo indireto e discreto —para amigos, para colegas da
Academia Brasileira de Letras, para leitores e para o público das suas
conferências.
Uma produção intelectual entre as mais
sofisticadas desse país nos últimos setenta anos foi —e continua a ser— sua
resposta.
Formado em ciências jurídicas e sociais
pela PUC do Rio de Janeiro em 1955, mesmo ano em que estudou no Instituto Rio
Branco, Rouanet teve carreira respeitável como diplomata. Começou como terceiro
secretário no Ministério das Relações Exteriores, em 1957, e ao se aposentar,
em 2000, colecionava funções de prestígio, como embaixador na Dinamarca.
João
Cabral de Melo Neto honrou o Itamaraty, mas foi ainda maior como
poeta. Rouanet se saiu bem como diplomata, mas foi ainda maior como
intelectual.
Seu trânsito por campos de conhecimento
como a filosofia, a psicanálise, a história e as ciências sociais rendeu mais
de 15 livros, além de um número sem fim de ensaios e artigos publicados em
revistas especializadas e na grande imprensa.
Escreveu por décadas no Jornal do Brasil e
contribuiu regularmente para o extinto caderno Mais!, da Folha, nos primeiros anos da
década de 2000.
Entre os temas da sua predileção, estavam o
iluminismo e a modernidade. Entre os pensadores, Walter Benjamin, Jurgen
Habermas, Michel Foucault e, principalmente, Sigmund Freud. Obras de Rouanet
como "Édipo e o Anjo" (1981), "Mal-estar na Modernidade"
(1993) e "Os Dez Amigos de Freud" (2003), esta última vencedora do
Jabuti na categoria educação, psicologia e psicanálise, demonstram sua
preocupação em traduzir o século 20 por meio dos seus movimentos universais e
também das suas patologias.
Em "As Razões do Iluminismo"
(1987), por exemplo, o ensaísta, grosso modo, sugere um novo olhar para o
conceito de razão, com base em Freud. Só assim, ele dizia, seria possível
retomar as vertentes iluministas.
Rouanet também se ocupava da história e da
cultura do Brasil em seus textos. Em "Riso e Melancolia", detalhou
aproximações da literatura de Machado
de Assis com obras de autores como Denis Diderot e Laurence Sterne.
Escreveu algumas vezes na Folha sobre Euclides da
Cunha. Em "Canudos
Chega à Alemanha", publicado em setembro de 1995, comentou um simpósio
sobre o autor de "Os Sertões" na Casa das Culturas do Mundo, em
Berlim. No último parágrafo, escreveu: "Pensar é preciso, e Euclides da
Cunha está ajudando os alemães a pensarem."
Como filósofo e mesmo como gestor cultural,
Rouanet ajudou o Brasil a pensar. Um dia, quando a estupidez da política do
país for refreada, seu legado será reconhecido como merece.
Os idiotas da atualidade adoram jogar pedras a tudo que lembre cultura e civilização.
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