segunda-feira, 4 de julho de 2022

Sergio Paulo Rouanet, morto aos 88 anos, ajudou o Brasil a pensar

Naief Haddad / Folha de S. Paulo

Filósofo criou a Lei Rouanet e teve como uma produção intelectual de alto nível seu modo de responder às críticas

Em 2012, pouco mais de vinte anos depois da criação da Lei de Incentivo à Cultura no Brasil, o filósofo e diplomata carioca Sergio Paulo Rouanet deu uma entrevista de tom amargo à Folha sobre sua passagem pela administração pública.

Afirmou que seu período como secretário de Cultura no governo Fernando Collor (1990-1992), no qual implantou a lei que se tornou famosa com seu sobrenome, havia sido um "equívoco". Disse também que o mecanismo era uma "página virada" para ele.

Rouanet conversou com o jornal depois de uma palestra em São Paulo. Encerrada a fala em um ciclo de conferências no Sesc Vila Mariana e antes que a entrevista começasse, o ensaísta foi abordado por duas mulheres. Graças à lei, disseram, elas conseguiam manter um projeto sobre memória.

Rouanet respondeu: "Acho que o grande complexo de inferioridade do intelectual é o de se sentir inútil. Quando um intelectual consegue fazer coisas úteis, e acho que consegui fazê-las, isso dá uma grande alegria. Me sinto muito feliz."

Embora sempre resistisse a falar sobre a lei para a imprensa, o intelectual, morto neste domingo (3) aos 88 anos, sabia da relevância do mecanismo.

São escassas as boas lembranças deixadas pelos anos Collor. A homologação da Terra Indígena Yanomami, em 1992, é uma delas. Outra é a Lei de Incentivo à Cultura lançada por Rouanet, que assumiu a pasta depois da gestão desastrosa de Ipojuca Pontes.

A partir de então, o governo passou a autorizar empresas e pessoas físicas a descontar do Imposto de Renda valores diretamente repassados a iniciativas culturais, como produção de livros, preservação de patrimônios históricos e peças de teatro.

Certamente havia falhas no projeto, que se tornaram evidentes com o correr do tempo. A concentração de iniciativas em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro estava entre elas. Rouanet estava ciente da necessidade de aprimoramentos no mecanismo, tarefa que deveria ter sido levada adiante pelas gestões posteriores –não foi a contento.

Não se deve negar à Lei Rouanet, porém, o papel de ponto de partida positivo como estímulo financeiro para a realização de projetos artísticos, uma proeza naquelas circunstâncias.

Com a ascensão das novas direitas, sobretudo a partir de 2015, o mecanismo passou cada vez mais a ser visto como sinônimo de mamata. Com Jair Bolsonaro no Planalto, a partir de 2019, Lei Rouanet ganhou definitivamente a carga de palavrão entre aqueles que não conheciam a gênese e os propósitos do projeto. Ou fingem não conhecê-las.

É uma lástima que Rouanet tenha morrido em uma época na qual seu nome é usado porcamente para alimentar o submundo da política. Ele nunca respondeu a essa turma. Ou, pensando bem, respondeu, sim, mas quase sempre de modo indireto e discreto —para amigos, para colegas da Academia Brasileira de Letras, para leitores e para o público das suas conferências.

Uma produção intelectual entre as mais sofisticadas desse país nos últimos setenta anos foi —e continua a ser— sua resposta.

Formado em ciências jurídicas e sociais pela PUC do Rio de Janeiro em 1955, mesmo ano em que estudou no Instituto Rio Branco, Rouanet teve carreira respeitável como diplomata. Começou como terceiro secretário no Ministério das Relações Exteriores, em 1957, e ao se aposentar, em 2000, colecionava funções de prestígio, como embaixador na Dinamarca.

João Cabral de Melo Neto honrou o Itamaraty, mas foi ainda maior como poeta. Rouanet se saiu bem como diplomata, mas foi ainda maior como intelectual.

Seu trânsito por campos de conhecimento como a filosofia, a psicanálise, a história e as ciências sociais rendeu mais de 15 livros, além de um número sem fim de ensaios e artigos publicados em revistas especializadas e na grande imprensa.

Escreveu por décadas no Jornal do Brasil e contribuiu regularmente para o extinto caderno Mais!, da Folha, nos primeiros anos da década de 2000.

Entre os temas da sua predileção, estavam o iluminismo e a modernidade. Entre os pensadores, Walter Benjamin, Jurgen Habermas, Michel Foucault e, principalmente, Sigmund Freud. Obras de Rouanet como "Édipo e o Anjo" (1981), "Mal-estar na Modernidade" (1993) e "Os Dez Amigos de Freud" (2003), esta última vencedora do Jabuti na categoria educação, psicologia e psicanálise, demonstram sua preocupação em traduzir o século 20 por meio dos seus movimentos universais e também das suas patologias.

Em "As Razões do Iluminismo" (1987), por exemplo, o ensaísta, grosso modo, sugere um novo olhar para o conceito de razão, com base em Freud. Só assim, ele dizia, seria possível retomar as vertentes iluministas.

Rouanet também se ocupava da história e da cultura do Brasil em seus textos. Em "Riso e Melancolia", detalhou aproximações da literatura de Machado de Assis com obras de autores como Denis Diderot e Laurence Sterne.

Escreveu algumas vezes na Folha sobre Euclides da Cunha. Em "Canudos Chega à Alemanha", publicado em setembro de 1995, comentou um simpósio sobre o autor de "Os Sertões" na Casa das Culturas do Mundo, em Berlim. No último parágrafo, escreveu: "Pensar é preciso, e Euclides da Cunha está ajudando os alemães a pensarem."

Como filósofo e mesmo como gestor cultural, Rouanet ajudou o Brasil a pensar. Um dia, quando a estupidez da política do país for refreada, seu legado será reconhecido como merece.

 

Um comentário:

  1. Os idiotas da atualidade adoram jogar pedras a tudo que lembre cultura e civilização.

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