Por Janaina Figueiredo / O Globo
Aos 84 anos, chileno destaca impacto das
eleições do Brasil para a América Latina, defende políticas de distribuição de
renda e reforça necessidade de fortalecimento das instituições
Não são tempos fáceis na América Latina, e
a eleição presidencial brasileira desperta interesse e expectativa entre
presidentes de outras épocas, que são referências regionais e mundiais. É o
caso do chileno Ricardo Lagos (2000-2006), primeiro presidente socialista a
assumir o poder em seu país depois de Salvador Allende (1970-1973), derrubado
pelo golpe de Augusto Pinochet. Em entrevista ao GLOBO, Lagos afirmou que “as
democracias devem ser cuidadas e mantidas”.
Infectado pela primeira vez pela Covid-19,
o ex-presidente, de 84 anos, falou sobre o drama da desigualdade na região,
defendeu reformas tributárias profundas, a necessidade de que a América Latina
tenha uma única voz para enfrentar os novos desafios globais e de que os
presidentes falem com franqueza de suas limitações e possibilidades. “Um
presidente é o principal comunicador de um país, deve saber se conectar com as
pessoas e deve dizer a verdade”, frisou Lagos.
Qual é sua expectativa sobre a eleição presidencial no Brasil?
Esta eleição no Brasil terá enorme impacto,
porque estamos falando do país mais importante da região. Sempre digo que a
América Latina existe quando Brasil, México, até ontem a Argentina e daqui para
frente a Colômbia, coincidem num olhar comum. Hoje, isso não acontece. Um dos
atores desta eleição, Lula, deixou o poder em 2010, veja quanto mudou o mundo
desde então. O Lula que eu conheci, com o qual trabalhei num período em que fui
presidente, era de outra época. O presidente (George W.) Bush, nos EUA, estava
preocupado com o atentado às Torres Gêmeas. Tivemos posições importantes e tivemos
de dizer não ao presidente Bush e à sua guerra no Iraque. Chile e México
estavam no Conselho de Segurança das Nações Unidas e nos opusemos à guerra. Os
contatos com Lula eram importantes e, naquele momento, a América Latina era
importante. Hoje a América Latina, por desgraça, não existe. Os presidentes têm
dificuldades para falar entre eles, e quando falam muitas vezes não estão de
acordo.
Antes, sobre questões internacionais,
existia um alto grau de coincidência. Portanto, a eleição no Brasil é importante.
O Lula que conhecemos pode ser o mesmo, mas o mundo mudou. A Covid-19 antecipou
a chegada de um novo mundo, no qual passamos da Revolução Industrial à
Revolução Digital. Os conceitos de esquerda e direita têm a ver com o mundo
industrial, com a dicotomia entre capital e trabalho. Essa forma de pensar
acabou. Hoje temos unicórnios azuis, e o que é isso? O conceito do trabalho
mudou. Nesse contexto acontece a eleição do Brasil, com dois candidatos, Lula e
o presidente atual, que é um pouco diferente dos presidentes que conhecemos,
para dizer o mínimo. Eu conheci o Brasil de Lula, depois do Brasil de Fernando
Henrique Cardoso. E quero destacar, em todos os casos, o papel do Itamaraty.
No plano de governo apresentado por Jair
Bolsonaro recentemente, ao contrário de 2018, a política externa volta a
antigas tradições e fala em defesa da “ordem global multipolar”.
Isso é importante, porque uma coisa que
estávamos acostumamos é ao multilateralismo. É preciso entender que hoje mudou
o papel das grandes potências. A China de hoje não é a mesma de 2010, e como
vamos nos adaptar, como região, a essas novas realidades? Sabemos que o futuro
é, por exemplo, o novo entendimento entre China e Índia, é a região da
Ásia-Pacífico. O mundo está mudando muito rápido.
O Brasil é sócio de ambos os países, e
também de Rússia e África do Sul, nos Brics…
Essa é outra questão fundamental, o que vai
acontecer com os Brics? Seria diferente o papel que teria Lula nesse grupo do
que eventualmente teria, se decidisse fazê-lo, o presidente Bolsonaro. São dois
mundos muito diferentes, e dois Brasis muito diferentes. Tem enorme importância
quem será o presidente do Brasil, do ponto de vista da política externa global.
Nas últimas eleições na América Latina
predominou a opção por uma mudança.
Sem dúvida, e mudança por quê? Porque
existe uma sensação de que a América Latina avançou, que tem uma classe média
que cresceu um pouco, mas, ao mesmo tempo, é uma região muito injusta. Os
indicadores sociais não nos orgulham. A questão é como gerar um estado de
bem-estar nos moldes europeus, num mundo muito mais integrado.
Como é possível ter uma única voz na
América Latina quando existem países que violam regras do sistema democrático,
direitos humanos, como Venezuela e Nicarágua?
As democracias estão em perigo. Aparecem
atalhos, demagogos, os que prometem o que sabem que não podem cumprir. Observo
esses dois países com preocupação. Quando vemos o caso do (Viktor) Orbán, na
Hungria, com todo respeito, ele foi capaz de governar com todo o poder concentrado
em uma só pessoa. As insatisfações sociais permitem que alguns pensem que podem
existir caminhos fáceis, atalhos, e esses atalhos podem gerar rupturas
institucionais grandes.
Nos casos de El Salvador, Nicarágua, já
houve rupturas da ordem democrática?
Claro, esse é o drama. A verdade é que não
existem atalhos, é preciso fazer um trabalho duro, firme e constante para
satisfazer as demandas crescentes de uma sociedade que vê que o país cresce e
que esse crescimento não chega a suas vidas. Como explicamos isso na América
Latina? Temos de crescer e depois distribuir os frutos. Muitos querem
distribuir frutos de um crescimento que não chega, e isso não é viável. As
democracias devem ser cuidadas e mantidas. A democracia é uma planta que
devemos regar todos os dias, e isso significa entregar algo todos os dias
quando o país cresce.
Estamos em 2022 e continuamos discutindo
como fazer da América Latina uma região menos desigual.
O boom das commodities foi um verão que
chegou à América Latina, mas em matéria de distribuição de renda não se avançou
da mesma maneira. Normalmente, os que estão melhor não querem falar sobre como
distribuir. Mas é preciso entender que se não houver uma melhor distribuição,
não poderemos resolver estes problemas. O Estado de bem-estar dos europeus
levou muito esforço, e foi alcançado entendendo que todos devem participar. No
caso do Chile, há mais de 20 anos, os recursos da arrecadação fiscal representam
20% do PIB, e na Alemanha, veja você, representam 35%. E vou dizer algo que me
envergonha: a metade desses 20% é o Imposto sobre o Valor Agregado (IVA), o
imposto ao consumo. Essas situações tão injustas devem ser abordadas, e não
são. Uma vez, um alemão me perguntou por que fazíamos estradas e cobrávamos
pedágio. Tive de explicar que não tínhamos os impostos que a Alemanha tem, o
que lhes dá o privilégio de ter estradas e não cobrar pedágio. Quando o país
cresce todos devem ganhar, e não apenas alguns.
O senhor, como muitos presidentes de sua
época, teve ‘lua de mel’ após assumir e deixou o governo com um alto índice de
aprovação. Como avalia o rápido desgaste dos novos governos da América Latina?
Uma questão fundamental é a comunicação dos chefes de Estado. Um presidente é o principal comunicador de um país, deve saber se conectar com as pessoas e deve dizer a verdade. No pior momento de meu governo, tive 45% aprovação. Quando saí, tinha 70%. Num determinando momento, disse que resolveria o problema das filas dos hospitais em poucos meses, percebi que fracassaria e decidi explicar por que fracassaria. Disse à ministra da Saúde, que era a futura presidente (Michelle) Bachelet, que devíamos nos antecipar, dizer que não cumpriríamos a meta, antes de que nos dissessem que não a tínhamos cumprido. As pessoas não se atrevem mais a fazer isso. Temos de explicar à sociedade o que podemos e o que não podemos, o que depende dos governos e o que depende de outros.
A América Latina em compasso de espera.
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