terça-feira, 16 de agosto de 2022

Almir Pazzianotto Pinto* - O momento passou

O Estado de S. Paulo

Apesar do cheiro de golpe no ar, a sociedade civil brasileira permanece em alerta. Sua arma é a Constituição

A ruptura violenta da ordem institucional é algo que exige a conjunção de diversos fatores, para alcançar sucesso. Os precedentes revelam ser indispensável cuidadosa preparação; que os agentes sejam ousados, dispostos a morrer ou matar; que a opinião pública se deixe apanhar de surpresa; e que o líder tenha inteligência, coragem e conte com as Forças Armadas.

Em Técnica do Golpe de Estado, Curzio Malaparte escreveu como Trotski, o teórico da revolução permanente, cujo nome real era Lev Davidovitch Bronstein (1879-1940), dizia ser possível derrubar qualquer governo quando a sociedade estivesse apática e desorganizada, se os conspiradores dispusessem de pequeno grupo de homens bem armados, dotados de coragem para ocupar, em poucas horas, posições estratégicas na capital do país.

O Brasil conhece algumas experiências de tentativas de golpes improvisadas, mal comandadas e fracassadas. A mais notória é a Intentona Comunista de 1935, liderada por Luís Carlos Prestes. Esmagada sem clemência pelo Exército, deixou como legado a implantação da ditadura de Getúlio Vargas em 10/11/1937, com a edição da Carta Constitucional de 10/11/1937. O preâmbulo, escrito por Francisco Campos, justificava o golpe, deflagrado para atender “ao estado de apreensão criado no País pela infiltração comunista que se torna dia a dia mais extensa e mais profunda, exigindo remédios de caráter radical e permanente”.

Em 11/5/1938 registrou-se nova tentativa de derrubada de Vargas, tramada por integralistas adeptos da doutrina difundida por Plínio Salgado. Reduzido grupo de homens, conduzidos pelo tenente Severo Fournier (1908-1946), tentaram invadir o Palácio Guanabara, residência do presidente e da família. Foram repelidos pelo próprio Getúlio, sua filha Alzira, poucos parentes e alguns auxiliares, armados de revólveres. Os atacantes não conseguiram ultrapassar os portões do palácio. O ataque foi contido antes que chegasse a Polícia Especial, comandada pelo coronel Cordeiro de Farias. Detalhado relato da aventura foi deixado por Alzira Vargas no livro Getúlio Vargas, meu pai. Recomendo a leitura a quem se interessar em conhecer o enigmático episódio do Estado Novo (1937-1945).

Patético arremedo de intentona se registrou no governo do presidente Juscelino Kubitschek (1956-1961). Em 11/2/1956, poucos dias após a posse, o major-aviador Haroldo Veloso se apoderou de bimotor da Força Aérea Brasileira (FAB), carregado com armas e explosivos. Auxiliado por alguns oficiais, levantou voo em direção a Jacareacanga, no sul do Pará, com a pretensão de iniciar movimento armado para derrubar o governo democraticamente eleito. Apesar de isoladas manifestações de solidariedade, a insurreição malogrou. No prazo de dias o governo restabeleceu a normalidade. Nova tentativa de golpe ocorreu no final do governo Kubitschek, promovida ainda pelo mesmo major Veloso, acompanhado pelo tenente-coronel aviador João Paulo Burnier. Como aconteceu na anterior, foi rapidamente sufocada. Em ambos os casos, os insurgentes foram anistiados e reincorporados à FAB.

Em 12/9/1963 cabos, sargentos e suboficiais da FAB e da Marinha de Guerra se mobilizaram contra o Supremo Tribunal Federal (STF), por decidir pela inelegibilidade de militares de baixa patente. Comandados pelo sargento Antônio Prestes de Paula (1927-2004), tentaram dominar Brasília. Alguns oficiais foram aprisionados. Também foram detidos o ministro Victor Nunes Leal, do STF, e o deputado federal Clóvis Motta. Após tiroteios com as forças governistas, os rebeldes baixaram as armas e se entregaram. Da inconsequente aventura, apoiada por vários dirigentes sindicais e parlamentares de esquerda, teriam participado cerca de 600 insurgentes. Um civil foi morto.

Durante a ditadura não houve, a rigor, tentativa de golpe. Apenas sedições promovidas por adversários do regime, como a do capitão Carlos Lamarca, desertor de Regimento de Infantaria de Quitaúna, ou a ocupação de áreas na região do Rio Araguaia por estudantes da classe média, que pagaram com a vida o gesto de coragem.

O fim do regime militar deu início à reconstrução do regime de liberdade. O governo do presidente José Sarney foi o viaduto na transição para o Estado de Direito Democrático, concluída com a promulgação da Constituição de 5/10/1988.

Estamos a menos de 50 dias das eleições. Sente-se, entretanto, cheiro de golpe no ar. Palavras imprudentes do presidente Jair Bolsonaro contribuem para a sensação de insegurança. S. Exa. não se cansa de investir contra ministros do STF e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Levanta infundadas suspeitas em relação ao pleito em que disputará a reeleição.

A sociedade civil permanece, porém, em alerta. Sua arma é a Constituição. É o esteio que, embora remendada, sustenta o Estado de Direito Democrático. O manifesto subscrito por centenas de milhares de cidadãos, corroborado por documentos lavrados por empresários e sindicalistas, revela o povo mobilizado em defesa da democracia.

O momento, se algum dia houve, já passou.

*Advogado, foi ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST)

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