quarta-feira, 3 de agosto de 2022

Daniel Rittner - Mudança gradual na infraestrutura

Valor Econômico

Nos próximos cinco anos, 83% da nova capacidade de geração elétrica virá das usinas contratadas no mercado livre

Ex-secretário especial de Desestatização do Ministério da Economia, Diogo Mac Cord acaba de assumir o cargo de sócio-líder de infraestrutura e mercados regulados na consultoria EY (antiga Ernst & Young). Depois de três anos e meio no governo, onde teve papel-chave no novo marco legal do saneamento e na privatização da Eletrobras, ele volta para o setor privado e observa que há uma mudança importante em andamento.

Até a década de 1990, era basicamente o investimento público que guiava a expansão da infraestrutura. A partir daí, houve uma guinada: concessões se espalharam em rodovias, em ferrovias, portos, energia elétrica, telefonia. Nos últimos anos, um movimento que vai ganhando corpo é o de investimentos por meio do regime de autorizações.

Contratos mais flexíveis vão ganhando espaço

São contratos mais flexíveis para o investidor privado, que toma a iniciativa de apresentar um projeto e busca no governo uma licença para construí-lo. Ninguém precisa ficar à espera do planejamento estatal para tocar estudos de viabilidade, passar pela demorada análise dos tribunais de contas, entrar em um leilão, manter tarifas controladas por agências reguladoras, gastar anos em discussões intermináveis sobre reequilíbrios econômicos. É verdade que também não existe compartilhamento de risco com o poder público, se aparecer algum problema grave no meio do caminho (como obstáculos ambientais ou de engenharia). Em compensação, o investidor tem muito mais liberdade para gerenciar e adaptar seus planos.

“Quando falamos em projetos de infraestrutura, são contratos necessariamente de longo prazo. São 30 anos à frente, e o mundo tem passado por transformações cada vez mais rápidas”, nota Mac Cord. “Em três décadas, é inviável prever tudo o que pode dar certo e tudo o que pode dar errado em um contrato. A flexibilidade ajuda na captura de inovações.”

Exemplifica o ex-secretário: as concessionárias de telefonia eram obrigadas, por força dos contratos de concessão de 1997, a fazer manutenção de orelhões até recentemente. Quem é capaz de assegurar se a exigência, hoje, de oferta gratuita do serviço de wi-fi nos aeroportos fará sentido ao fim dos contratos em 2052?

Não são só reviravoltas na tecnologia, mas novos rumos econômicos. Outro dia mesmo, no governo Fernando Henrique Cardoso, o sonho do campo era alcançar uma safra de grãos de 100 milhões de toneladas. Hoje colhe-se quase três vezes mais. A demografia também ganha outra cara. “A partir de 2040, começaremos a ver um declínio da população economicamente ativa no país. Em 2049, teremos mais aposentados do que jovens. E os contratos de concessão que forem firmados hoje ainda vão estar válidos lá na frente”, afirma.

Em vários segmentos da infraestrutura, o regime de autorizações tem avançado. Merece atenção especial, em um país que adora reinventar políticas públicas a cada troca de governo, como essa pauta atravessou diferentes gestões e não foi vítima de polarização.

Nos portos, Dilma Rousseff alterou a lei para permitir mais terminais de uso privado - que são conhecidos pela sigla TUP. Já foram autorizados 259 projetos, que somam R$ 55 bilhões em investimentos previstos. Outra mudança, por decreto mesmo, viabilizou novos aeroportos à aviação geral. O Catarina, que funciona em São Roque (SP) e tornou-se rapidamente a meca dos jatinhos executivos, saiu pelo modelo de autorização. Se no futuro for erguido um novo aeroporto destinado à aviação regular, em São Paulo, ninguém duvide: não será por concessão.

Jair Bolsonaro sancionou leis que replicam esse regime de autorizações para a construção de gasodutos e de ferrovias. No caso das ferrovias, houve uma rara convergência política: o projeto de lei foi apresentado pelo senador José Serra (PSDB), relatado por Jean Paul Prates (PT), negociado diretamente pelo então ministro Tarcísio Freitas. Dezenas de pedidos de licenças foram aprovados ou estão em análise. Muitos são só papel, de empreendedores que buscam um “título” para então sair atrás do dinheiro real, mas outros tantos são para valer e criarão novas linhas de trens.

Mac Cord avalia que uma série de oportunidades hoje inexistentes podem acabar surgindo. “Não precisamos pensar cada setor de forma isolada. Às vezes uma ‘short line’ (ramal ferroviário de pequena extensão) pode usar sua faixa de servidão para um gasoduto. E tudo isso, junto, talvez seja o que viabilizará um TUP ou um parque eólico”, diz.

O setor elétrico está em processo de liberalização e não são mais os leilões organizados pelo governo que puxam sua expansão. Nos próximos cinco anos, 83% da nova capacidade de geração virá das usinas contratadas no mercado livre.

O ex-secretário pondera que algumas áreas da infraestrutura, como mobilidade urbana, estão defasadas. “A regra tem sido ver ônibus poluentes, ineficientes e atrasados. Há oportunidades de consolidação, com operadores otimizando linhas. Em muitos terminais, com todo aquele fluxo enorme de gente, às vezes não se consegue comprar um saquinho de pipoca”, nota Mac Cord, para ilustrar como é subaproveitado o potencial de receitas comerciais.

Evidentemente há outros setores, como saneamento e rodovias, em que o sistema de concessões sempre fará mais sentido. Ninguém imagina duas estradas paralelas ou redes de esgoto construídas voluntariamente. Não importa para onde se olhe, entretanto, Mac Cord acredita que ambos os lados - governo e iniciativa privada - têm procurado mais convergência. Os empresários querem lucro, e para isso não gostam de projetos mal feitos ou marcos regulatórios ruins. Governos, para funcionarem bem e terem sucesso nas urnas, precisam dos recursos privados.

Graduado em engenharia, Mac Cord tem mestrado em administração pública por Harvard. As duas escolas mais prestigiosas da universidade americana - Business School e School Government - ficam em margens opostas do rio Charles, que separa Boston e Cambridge. Cada cidade põe a culpa no outro lado por seus problemas. Há impaciência e falta de compreensão mútua.

“Não importa de qual lado se estiver - se no mercado ou no governo - temos que entender as expectativas de cada um para fazer um jogo de ganha-ganha”, comenta Mac Cord. Também é imprescindível, sempre, ter a clareza de que infraestrutura é um meio e não uma finalidade em si. Não basta propiciar bons negócios. Acima de tudo está a qualidade do serviço prestado ao usuário e não constituir um entrave ao desenvolvimento.

2 comentários:

  1. Anônimo3/8/22 14:44

    Excelente texto! Faltou dizer que os ratos mais graúdos (como o entrevistado) já deixaram o barco sem rumo do liberal Guedes e capitão Bolsonaro que já está indo a pique!

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