Revista Veja
As redes sociais de fato deram voz aos
sábios de mesa de bar. Mas a internet é só uma ferramenta. O problema está no
coração humano, e vem de longe
Os militantes estão em toda parte. O chato
do WhatsApp talvez seja o pior de todos. O pessoal cria um grupo para trocar
ideias sobre a escola, e lá está ele, todo santo dia, mandando figurinhas
contra ou a favor do Bolsonaro. Tem o xarope do Twitter,
cuspindo suas pequenas frases de efeito, dia e noite. A vantagem desse é que se
pode bloquear, e o sujeito some do mapa. Há muitos outros. Um deles é o
militante da faculdade. O vereador Fernando Holiday foi impedido de falar, aos
gritos e pontapés, na Unicamp, em um episódio constrangedor. As universidades
são públicas, mas o militante acha isso conversa fiada. Seu mundo é Star Wars.
Forças do bem contra forças do mal. É um mundo divertido, não há dúvida, ainda
que possa soar um tanto ridículo, visto a certa distância.
O problema é o militante fora do lugar. Ele ainda não invadiu as reuniões de condomínio, mas o mesmo não se pode dizer das empresas e agências de publicidade. E da Netflix, claro. Estes dias vi uma lista de “séries que você pode ver sem um sermão a cada episódio”. Guardei. Outro espaço colonizado é a imprensa, mas não toda. A existência de uma mídia profissional, fiel aos fatos e imparcial, é elemento essencial para a qualidade do debate público. É espaço de confiança, onde pessoas e grupos com visões antagônicas podem buscar informação, e com isso formar uma base comum de fatos e razões para lidar com a realidade. Isto tudo vai pelo ralo com o jornalismo militante, no qual a opinião pende sempre para o mesmo lado, e o noticiário vem misturado com a adjetivação, perdendo-se a distinção elementar entre fato e interpretação.
Qual é exatamente o tamanho e o lugar que
ocupam os militantes na democracia atual? Qualquer resposta será imprecisa, mas
alguns indicativos existem. Um deles vem do projeto “Hidden Tribes”, uma ampla
pesquisa feita nos EUA sobre as “tribos esquecidas” da sociedade atual. A
pesquisa identificou sete grandes grupos na política americana, dos mais
radicais à esquerda e à direita, passando pelos liberais moderados,
conservadores tradicionais etc. O pulo do gato foi identificar o que os autores
chamaram de “maioria exausta”. É o amplo segmento composto das pessoas sem
engajamento político (26% da população), e os segmentos moderados de cada lado.
Na amostragem americana, ela abrange 67% das pessoas. Formam o que chamamos de maioria
silenciosa, mas confesso não gostar do conceito. São pessoas que usualmente
exprimem suas visões. Apenas recusam a estridência. E tendem a ser mais
flexíveis ideologicamente. Estão dispostas a ponderar e intuem que a política é
feita de ajustes de parte a parte. Em geral, são pessoas cansadas do tipo de
debate polarizado e se sentem pouco representadas.
O ponto central é o cruzamento das
fronteiras ideológicas. A imensa maioria (87%), por exemplo, se opõe ao uso de
raça como critério de admissão em faculdades; ao mesmo tempo, a maior parte
apoia o casamento entre pessoas do mesmo sexo (64%) e aceita com naturalidade
pessoas transgênero (66%). Vai aí um dos traços definidores do militante: a
recusa da complexidade. É evidente que há temas em que a ideia de complexidade
não se aplica. A violência é um deles. Se a Rússia invade a Ucrânia, não há que
se falar em “culpa de um lado, culpa do outro”. Mas a maioria das questões da
vida pública não é assim. Há prós e contras no desenho do Auxílio Brasil, na redução do ICMS, na
legislação do Simples, e em quase todos os temas no Congresso. Vale o mesmo
para a avaliação dos governos. Governos erram e acertam, para desespero do
militante típico. Na sua cabeça bicolor, isso é impensável. Escrever que o
governo andou bem quando reduziu impostos, fez o marco do saneamento e a
autonomia do Banco Central, e mal na área da educação e da cultura. No Brasil,
criou-se uma expressão jocosa, o isentão, que é o tipo capaz de ponderar alguma
coisa, e que não por acaso recebe o ódio duplicado dos torcedores fanatizados.
Em que pese amplamente majoritária, na base
da sociedade, quem dá o tom do jogo político é a minoria engajada. Na pesquisa
do “Hidden Tribes”, esse grupo chega a um terço da sociedade, sendo 14% os
efetivamente radicais. Boa parte de nosso debate público ocorre no interior
desse universo. E aí temos um problema. Em uma democracia polarizada, como a
brasileira, é previsível que as hordas militantes oscilarão entre os que acham
que há uma “revolução em curso”, construindo um “novo Brasil”, e os que nos
enxergam à beira do “abismo civilizacional”, como costumo ler por aí. Ambas as
visões, por óbvio, são expressões da crosta militante. Não raro, o discurso
feito sob medida pelos profissionais da opinião, nas redes, canais de YouTube
ou na autointitulada “mídia profissional”, que não raro ganham um bom dinheiro
jogando mais e mais toxina no debate público. Fazendo crer que falam do Brasil,
quando apenas reagem ao quem veem diante do espelho.
Cresci no mundo político escutando aquele
poema do Bertolt Brecht dizendo que “o pior analfabeto é o analfabeto
político”. Que é da sua ignorância que nascem “a prostituta, o menor
abandonado, o assaltante… o político bajulador das empresas nacionais e
multinacionais”. A lógica de Brecht era sedutora: quanto mais atenção déssemos
à política, mais rápido iríamos “mudar a sociedade”. Isso foi nos anos 1980.
Quatro décadas depois, atravessamos o samba. Quem matou a charada foi um jovem
cientista político americano, Jason Brennan. O problema, diz ele, é alguém
achar que é politizado quando é apenas um hooligan. O tipo que acha que “está
tudo errado”, ou que “está tudo perfeito”, que se imagina com “espírito
crítico”, mas no fundo não tem capacidade crítica nenhuma. Age apenas como o
torcedor apaixonado, cada vez mais especializado em suas próprias opiniões.
Alguns culpam a internet. As redes sociais
de fato deram voz aos sábios de mesa de bar. Mas a internet é só uma
ferramenta. O problema está no coração humano, e vem de longe, na história.
Sempre me lembro da expressão melancólica de Madame De Staël, no período final
da revolução, dizendo que o “espírito de partido” havia tomado conta da França
e que era preciso “sabedoria, tempo e moderação” para curar o rastro de ódio deixado
pelo terror. No Brasil de hoje não há nenhuma revolução. Nossos problemas são
bem mais prosaicos. Fazer o país crescer, assegurar direitos, reduzir a
pobreza. Temas sem graça para o militante típico, mas essenciais para a
“maioria exausta”, que é quem deve dar as cartas, afinal de contas, em uma
grande democracia.
*Fernando Schüler é cientista político e
professor do Insper
Publicado em VEJA de 24 de agosto de 2022, edição nº 2803
O colunista "isentão" preferiu não abordar os bolsonaristas... Se quisesse tratá-los, teria que mudar seu título: A sociedade dos milicianos!
ResponderExcluirDos dois lados há militantes chatos e agressivos,a extrema-direita,porém,é mais violenta.
ResponderExcluirAo 'Anônimo".
ResponderExcluirSua postagem só confirmou o que ele escreveu.
"O problema está no coração humano", segundo o colunista. Bolsonaro acreditou e já trouxe a solucionática: importou um coração que estava aposentado em Portugal, gastando uma fortuna na presepada!
ResponderExcluirOutro também teria trazido. E gastado muito mais, como gastava em viagens internacionais com, entre outras coisas, hotéis caríssimos.
ResponderExcluirSim, está no coração humano.
Esse sarapatel político-ideológico em que está dividida a sociedade só terá solução com o avanço da democracia. É a democracia que vai resolver o impasse ente esquerda e direita. A esquerda comunista em nome da ditadura do proletariado esqueceu da democracia. O liberalismo capitalista também esqueceu da democracia. O fim da URSS liquidou as sociedades baseadas na ditadura do proletariado e o capitalismo que já namorou com a democracia quando foi liberal democrático, hoje tem medo da democracia ampliada baseada no voto universal onde votam os sem teto, os favelados, os sem terra, resumindo os lascados da sociedade capitalista. A vitória dessa democracia levará necessariamente ao fim dessas criações da burguesia (favelas, moradores de rua, etc). Por isso a burguesia está apostando em elementos como Trump e Bolsonaro favoráveis à pena de morte, e a caçadores de militantes do MST (o javali entra de gaiato). O povo e a esquerda que ainda se intitula de marxista-leninista tem que se ligar que a bandeira da esquerda e do povo chama-se DEMOCRACIA. Está não interessa de jeito nenhum nem à classe média pudibunda nem aos ladrões bilionários.
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