O Globo
Não é trivial que uma nação assentada na
escravidão e no patriarcado encontre tempo, espaço e gente disposta a passar a
limpo a História
No mesmo fim de semana em que o presidente da República anunciou a celebração militar do Bicentenário da Independência na Praia de Copacabana, mulheres negras voltaram a marchar, após dois anos, contra o racismo e pelo bem viver na famosa pista à beira do Atlântico. O calçadão foi delas. Hoje, o Instituto Marielle Franco e o movimento Mulheres Negras Decidem realizam o primeiro encontro nacional de candidatas afro-brasileiras às assembleias legislativas nas eleições 2022. E um par de podcasts reivindica o protagonismo negro e o feminino na emancipação do Brasil. No país, o futuro está em construção, e o passado em disputa.
Não é trivial que uma nação assentada na
escravidão e no patriarcado, desigual a perder de vista, sob um governo de
extrema direita em que o chefe do Executivo federal ataca, dia sim, dia também,
as urnas eletrônicas e as autoridades eleitorais, encontre tempo, espaço, gente
disposta a passar a limpo a História e a sonhar o porvir. Mulheres negras
marcharam pela oitava vez no Rio de Janeiro denunciando violações de direitos e
cobrando igualdade. Fecharam a semana em que 19 representantes de organizações
da sociedade civil brasileira foram recebidos, em Washington (EUA), no
Departamento de Estado, na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, por
embaixadores da OEA e por parlamentares no Capitólio, incluindo o senador
democrata Bernie Sanders, para agenda em defesa do sistema eleitoral. O roteiro
é parte da estratégia para dar visibilidade internacional às ameaças e
arregimentar apoio à democracia no país.
“Estamos
Prontas” é a iniciativa de incidência política que reuniu 27 candidatas a
deputada estadual, negras, LGBTQIA+, periféricas, uma de cada unidade da
Federação. No encontro de hoje, elas apresentarão um rol de compromissos em
justiça social, racial e de gênero a ser cobrados do próximo presidente da
República. Remotamente, participa do evento a vice-presidente eleita da
Colômbia, Francia Márquez, que visitou o Brasil em fins de julho.
É sintomático que iniciativas recentes de
revisitar a História do Brasil, tendo ao centro pessoas negras e mulheres,
venham na forma de podcast. Grupos invisibilizados pelos registros escritos dos
livros escolares estão sendo resgatados pela via que os manteve vivos, a
oralidade. “Mulheres na Independência” é um podcast com seis episódios, um por
semana, dedicados a heroínas nacionais. Tem roteiro e apresentação de Antonia
Pellegrino e pesquisa da historiadora Heloisa Starling e de seu grupo
República, da UFMG. O primeiro episódio entrou no ar anteontem. É dedicado a
Hipólita Jacinta Teixeira de Melo, líder desconhecida da Conjuração Mineira
(1789-1792), que tem como ícone e mártir Tiradentes. Até 7 de setembro, a cada
quarta-feira, virão Bárbara de Alencar (Revolução Pernambucana, 1817); o trio
Maria Felipa de Oliveira, Urania Vanério e Maria Quitéria, referências na
Independência da Bahia, 1822-1823; e a Imperatriz Leopoldina (Proclamação da
Independência, 1822). Urânia Vanério foi uma menina baiana que, aos 10 anos de
idade, escreveu um panfleto contra a tirania da Coroa portuguesa. A
historiadora Patrícia Valim, da UFBA, chegou ao nome dela recentemente.
Amanhã, estreia “Querino”, o podcast da
blockbuster Rádio Novelo, com apresentação e coordenação do premiado jornalista
Tiago Rogero, consultoria da historiadora Ynaê Lopes dos Santos (autora do
recém-lançado “Racismo brasileiro: uma história da formação do país”, da
editora Todavia) e apoio do Instituto Ibirapitanga. A empreitada, que apresenta
a Independência do Brasil sob a ótica e a atuação de africanos escravizados e
seus descendentes, foi inspirada no “The 1619 Project”, do New York Times. Em
2019, sob coordenação de Nikole Hannah-Jones, o jornal americano apresentou a
participação dos negros na formação dos Estados Unidos a partir da chegada do
primeiro navio com africanos escravizados, mais de um século e meio antes da
Independência, em 1776.
Nos últimos dois anos e meio, Rogero se
dedicou a pesquisas, entrevistas e produção dos oito episódios e um site, já no
ar. O nome do projeto é homenagem a Manoel Raimundo Querino (1851-1923),
intelectual e abolicionista baiano, pioneiro em estudos sobre o papel dos
africanos e dos afro-brasileiros no desenvolvimento do Brasil. “Ele é
considerado o primeiro brasileiro, negro ou branco, a detalhar, analisar e
fazer justiça às contribuições africanas no Brasil. Foi o primeiro intelectual
a tratar positivamente o negro e o africano na nossa História. Revolucionário”,
conta o jornalista.
O grande texto de Querino, informa Rogero,
é “O colono preto como fator da civilização brasileira”, de 1918. Na obra,
defende que o colono preto — não o escravizado — é o fator máximo da riqueza
econômica do Brasil. Foi o produto do trabalho negro, continua, que legou ao
país instituições científicas, letras, artes, comércio, indústria. Querino é
estrela do quarto episódio. Na estreia, o projeto desmistifica o mito da
independência proclamada pelo príncipe altivo sobre o cavalo branco. Quem
assinou a emancipação de Portugal, conta a historiadora Ynaê, foi Maria
Leopoldina, regente interina, enquanto o marido, Pedro I, voltava de viagem. E
lembra o sangue derramado de negros e caboclos, por mais de ano na Bahia, com
protagonismo de Felipa, até a retirada da frota portuguesa em 2 de julho de
1823, bicentenário no ano que vem.
A direita xucra enlouquece com essas homenagens.
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