terça-feira, 2 de agosto de 2022

Luiz Gonzaga Belluzzo* - A Carta às brasileiras e aos brasileiros*

À véspera das eleições, a Carta deve ser lida e relida pelos brasileiros com a mesma devoção que os cristãos deveriam prestar à leitura do Sermão da Montanha

 “Nesse momento não tem empresário, jurista ou artista, é a defesa de todos, das pessoas que começam a prestar mais atenção e perceber que as coisas estão transbordando”. Assim falou ao Valor o empresário Horácio Lafer Piva.

A “Carta às brasileiras e aos brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito” será lançada na Faculdade de Direito da USP em 11 de agosto, no Pátio das Arcadas.

Entre tantos parágrafos valiosos, ousei escolher dois que me tocaram fundo:

“Nossa democracia cresceu e amadureceu, mas muito ainda há de ser feito. Vivemos em um país de profundas desigualdades sociais, com carências em serviços públicos essenciais, como saúde, educação, habitação e segurança pública. Temos muito a caminhar no desenvolvimento das nossas potencialidades econômicas de forma sustentável. O Estado apresenta-se ineficiente diante dos seus inúmeros desafios. Pleitos por maior respeito e igualdade de condições em matéria de raça, gênero e orientação sexual ainda estão longe de ser atendidos com a devida plenitude”.

Mais adiante: “Nossa consciência cívica é muito maior do que imaginam os adversários da democracia. Sabemos deixar ao lado divergências menores em prol de algo muito maior, a defesa da ordem democrática”.

À véspera das eleições, a Carta deve ser lida e relida pelos brasileiros com a mesma devoção que os cristãos deveriam prestar à leitura do Sermão da Montanha. Diante da empolgação cívica que avassala o país não resisti a cuidar da devoção democrática do mestre e amigo Ulysses Guimarães.

Redigido por muitas mãos no alvorecer dos anos 1980, sob a inspiração de Ulysses Guimarães, o documento “Esperança e Mudança” dá testemunho de um Brasil que, auguramos, ainda possa resistir aos esbirros do autoritarismo e da estupidez.

“...A crise nacional não encontrará solução sem mudanças profundas. Mudanças que só poderão ter início com o fim do arbítrio e da exceção. Mudanças que haverão de nascer do reencontro do povo com o poder político. A sociedade brasileira anseia pela Democracia, luta por ela, sonha com ela. A sociedade repele o arbítrio através de todas as suas formas de representação de interesses e de organização social: partidos políticos, movimentos sociais, organizações comunitárias, igrejas, sindicatos, organizações patronais, profissionais, movimentos setoriais e culturais.

Democracia é Estado de Direito, liberdade de pensamento e de organização popular, respeito à autonomia dos movimentos sociais e repousa na existência de partidos políticos sólidos.

Democracia significa voto direto e livre, significa restauração da dignidade e das prerrogativas do Congresso e do Poder Judiciário, significa liberdade e autonomia sindical, significa liberdade de informação e acesso democrático aos meios de comunicação de massa. Democracia implica democratização das estruturas do Estado, implica resgatar a soberania nacional, implica redistribuição da renda, criação de empregos e bem-estar social crescente. A Assembleia Nacional Constituinte haverá de ser o berço de tudo isso - o berço da Democracia -, o berço pacífico e representativo dos anseios do povo”.

Em um domingo paulistano, logo após a derrota das eleições diretas, Ulysses reuniu mais uma vez em sua casa os que estiveram com ele no combate persistente contra a ditadura. (Vou invocar aqui o testemunho dos meus amigos João Manuel Cardoso de Mello, Luciano Coutinho e José Gregori).

Ulysses levantou-se para perorar o seu Sermão aos Homens da Planície Política, aos que imaginavam convencê-lo das conveniências da disputa no Colégio Eleitoral. Dentre tantas, guardei as frases que provocaram lágrimas em sua mulher, Dona Mora, sentada num sofá mais distante da pequena aglomeração de companheiros de seu marido. “Para o Colégio Eleitoral eu não vou. Seria uma facada nas costas do povo que se mobilizou nas praças e nas ruas para participar dos comícios pelas Diretas Já. Digo a vocês, a conquista da democracia não será completa sem a manifestação da vontade popular”.

A campanha popular das Diretas foi derrotada com a cumplicidade de muitos que estavam na oposição, mas temiam a “radicalidade” de um governo eleito pelo povo. Por isso, os náufragos do regime militar conseguiram chegar até a praia, acolhidos pelo bote salva-vidas capitaneado pela turma do deixa-disso.

Apesar da campanha pelas Diretas ter conseguido forte mobilização popular, não foi capaz de vencer as casamatas do poder real que, desde sempre, comandam a política brasileira. Essa turma não tem o hábito de dar refresco ao inimigo. Quanto aos princípios jurídicos, devem ser respeitados se o povaréu não botar as manguinhas de fora.

Nos eflúvios de civismo democrático que se desgarram das letras da Carta assinada por milhares de brasileiros em defesa da soberania popular, não posso negar ao leitor as palavras de Ulysses Guimarães na sessão de promulgação da outra Carta, a Magna: “A sociedade foi Rubens Paiva, não os facínoras que o mataram. Foi a sociedade, mobilizada nos colossais comícios das Diretas Já, que, pela transição e pela mudança, derrotou o Estado usurpador. Termino com as palavras com que comecei esta fala: a Nação quer mudar. A Nação deve mudar. A Nação vai mudar. A Constituição pretende ser a voz, a letra, a vontade política da sociedade rumo à mudança. Que a promulgação seja nosso grito: Mudar para vencer! Muda, Brasil!”

Em 1992 os caras-pintadas acorreram às ruas para pedir o impeachment do então presidente Fernando Collor de Mello. Pouco antes, em longa conversa comigo na presença do jornalista Roberto Müller Filho, Ulysses Guimarães desfiou temores e preocupações diante do iminente impeachment do presidente eleito pelo voto popular.

Os receios do Senhor Diretas concentravam-se no “vício antidemocrático” dos donos do poder, habituados a manejar os cordéis do arbítrio a seu talante e ao sabor de seus interesses.

Às vésperas da morte trágica, Ulysses compreendeu que a campanha popular pelas eleições diretas e a Constituição ainda sofriam o assédio insidioso, persistente do velho e sempre renovado arranjo oligárquico que controla a vida dos brasileiros.

* (Homenagem a Ulysses Guimarães)

*Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp.

 

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