quinta-feira, 11 de agosto de 2022

Maria Cristina Fernandes - O melhor arsenal democrático da praça

Valor Econômico

Pragmatismo dos EUA levaram a recuo na pressão contra o golpe

A liberação, pelo Departamento de Estado, da venda de um sistema antimísseis ao Brasil foi a primeira grande fraquejada da pressão americana contra as ameaças golpistas do presidente Jair Bolsonaro. Foram pelo menos oito os porta-vozes americanos que fizeram declarações de apoio à democracia brasileira, aí incluído o diretor-geral da CIA, William Burns, o secretário de Defesa, Lloyd Austin e o chefe de Estado, Joe Biden.

Esta pressão ganhou concretude no Capitólio. No ano passado 63 congressistas enviaram uma carta a Biden para que ele revisse a oferta ao Brasil de aliado extra-Otan, feita no governo Donald Trump. Este ano, um deputado democrata apresentou uma proposta de emenda ao orçamento de Defesa para vincular as operações comerciais e de crédito entre as Forças Armadas americanas e brasileiras à neutralidade desta última em relação às eleições.

Na medida em que a proatividade dos porta-vozes da Casa Branca na condenação ao golpismo bolsonarista freou o ímpeto dos congressistas, o governo americano avançou com a venda ao Brasil do sistema antimísseis por U$ 74 milhões.

Trata-se de um equipamento produzido por duas gigantes do complexo industrial-militar americano, a Lockheed e a Raytheon. Este sistema antimísseis, Javelin, fez sucesso na guerra da Ucrânia mas, segundo os próprios americanos enfronhados na transação falaram à Reuters, o Brasil “não precisa desse sistema”.

Embora as prioridades do Brasil não sejam definidas no Capitólio, parece, de fato, difícil imaginar como um sistema antimísseis poderia evitar que os assassinos de Bruno Pereira e Dom Phillips trafegassem pela fronteira amazônica.

Desde 1961, pelo menos, sabe-se que este mercado não se move pelas prioridades nacionais. Naquele ano, Dwight Eisenhower, comandante das forças aliadas na Europa durante a Segunda Guerra Mundial, primeiro comandante da Otan e presidente dos EUA no pós-guerra, despediu-se do poder com um alerta.

“Gastamos mais em segurança militar do que o orçamento de todas as empresas americanas (...) Temos que nos precaver contra a aquisição de uma influência injustificada, desejada ou indesejada, de nosso complexo industrial militar. O risco potencial de desastre existe e vai persistir”, disse.

Ao tomar posse esta semana, o novo presidente colombiano, Gustavo Petro, parecia guiado pela advertência. Em seu discurso, citou 20 vezes a palavra “paz” para sacramentar a falência da guerra às drogas: “Vamos esperar que outro milhão de latino-americanos sejam assassinados e que cheguem a 200 mil os mortos anuais por overdose nos Estados Unidos?”

Se a expansão do aparato bélico americano na Colômbia terá um freio, também parece improvável que EUA, em rota de aproximação com a Venezuela pela segurança energética, continue a se armar em direção à fronteira de Nicolás Maduro.

O professor de Relações Internacionais da Fundação Getulio Vargas, Oliver Stuenkel, que esteve em rodada de conversas recente com autoridades em Washington, acrescenta as incógnitas que cercam a base espacial chinesa em Neuquén, Argentina, entre os motivos pelos quais a parceria militar americana com o Brasil ganha relevância no momento.

A renovada importância estratégica do Brasil nesta conjuntura continental, aliada à existência de um presidente que ameaça diuturnamente a democracia no Brasil, pareceu, aos congressistas americanos, um momento apropriado para a tentativa de impedir a venda deste sistema antimísseis.

Foi sob este pano de fundo que o secretário de Defesa americano, Lloyd Austin, desembarcou no Brasil em julho para um encontro de ministros de Defesa. Anunciou que, em 2023, seu país alocaria US$ 115 milhões para um continente unido no “compromisso com o Estado de direito e a devoção à democracia”.

Em entrevista, foi além. Disse ter reafirmado aos colegas que o papel do Exército numa sociedade democrática passava pelo controle civil dos militares. Explicitava a necessidade de colaboração, especialmente do anfitrião, o ministro Paulo Sérgio Oliveira, para que o Congresso americano não encasquetasse com o Orçamento ali anunciado. A reprimenda foi um vexame para o general brasileiro.

Àquela altura, o coronel Sant’Anna dava livre curso à sua dupla militância, como perito de cibernética, no acesso a dados sigilosos do TSE e na propagação de notícias falsas sobre o sistema eleitoral. Foi preciso que o jornalista Rodrigo Rangel, do “Metrópoles”, divulgasse seus afazeres, e que os ministros Edson Fachin e Alexandre de Moraes afastassem o coronel da comissão, para que o caso ganhasse publicidade. Foi o segundo vexame, em menos de um mês, mas Paulo Sérgio dobrou a aposta e não indicou um substituto para o coronel.

Não surpreende que a confiança da população nas Forças Armadas tenha chegado a um dos piores patamares de sua história. Pela pesquisa Ipsos divulgada esta semana, apenas 30% dos brasileiros confiam na instituição. Num conjunto de 28 países, o Brasil ocupa a 25ª posição em confiança nos seus militares, com uma queda de cinco pontos percentuais do ano passado para cá.

A decisão do governo americano pela venda do sistema antimísseis ainda terá que ser referendada pelo Congresso. Um observador que acompanha o tema em Washington diz que o recesso do Senado impede que se avalie a chance de a venda ser referendada pelos congressistas, mas o histórico de tramitação de temas afins favorece a expectativa de aval.

O governo americano decidiu vender armas para um país, como a Arábia Saudita, apesar de dispor de relatórios de inteligência sobre a participação do príncipe herdeiro no assassinato de um jornalista saudita que atuava como colunista de um jornal americano. Por isso, supor que a atuação de Bolsonaro, que chegou a duvidar da lisura da eleição de Biden, venha a ser um impedimento desta venda, é um tributo à ingenuidade.

No império do pragmatismo, a melhor defesa que os brasileiros podem arrumar para suas eleições está em atos como o desta quinta-feira. A leitura da carta em defesa do estado de direito no Largo de São Francisco, em São Paulo, e em faculdades de direito de outros 26 Estados é a exibição do melhor arsenal democrático da praça.

 

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