Valor Econômico
Pragmatismo dos EUA levaram a recuo na
pressão contra o golpe
A liberação, pelo Departamento de Estado,
da venda de um sistema antimísseis ao Brasil foi a primeira grande fraquejada
da pressão americana contra as ameaças golpistas do presidente Jair Bolsonaro.
Foram pelo menos oito os porta-vozes americanos que fizeram declarações de
apoio à democracia brasileira, aí incluído o diretor-geral da CIA, William
Burns, o secretário de Defesa, Lloyd Austin e o chefe de Estado, Joe Biden.
Esta pressão ganhou concretude no
Capitólio. No ano passado 63 congressistas enviaram uma carta a Biden para que
ele revisse a oferta ao Brasil de aliado extra-Otan, feita no governo Donald
Trump. Este ano, um deputado democrata apresentou uma proposta de emenda ao
orçamento de Defesa para vincular as operações comerciais e de crédito entre as
Forças Armadas americanas e brasileiras à neutralidade desta última em relação
às eleições.
Na medida em que a proatividade dos porta-vozes da Casa Branca na condenação ao golpismo bolsonarista freou o ímpeto dos congressistas, o governo americano avançou com a venda ao Brasil do sistema antimísseis por U$ 74 milhões.
Trata-se de um equipamento produzido por
duas gigantes do complexo industrial-militar americano, a Lockheed e a
Raytheon. Este sistema antimísseis, Javelin, fez sucesso na guerra da Ucrânia
mas, segundo os próprios americanos enfronhados na transação falaram à Reuters,
o Brasil “não precisa desse sistema”.
Embora as prioridades do Brasil não sejam
definidas no Capitólio, parece, de fato, difícil imaginar como um sistema
antimísseis poderia evitar que os assassinos de Bruno Pereira e Dom Phillips
trafegassem pela fronteira amazônica.
Desde 1961, pelo menos, sabe-se que este
mercado não se move pelas prioridades nacionais. Naquele ano, Dwight
Eisenhower, comandante das forças aliadas na Europa durante a Segunda Guerra
Mundial, primeiro comandante da Otan e presidente dos EUA no pós-guerra,
despediu-se do poder com um alerta.
“Gastamos mais em segurança militar do que
o orçamento de todas as empresas americanas (...) Temos que nos precaver contra
a aquisição de uma influência injustificada, desejada ou indesejada, de nosso
complexo industrial militar. O risco potencial de desastre existe e vai
persistir”, disse.
Ao tomar posse esta semana, o novo
presidente colombiano, Gustavo Petro, parecia guiado pela advertência. Em seu
discurso, citou 20 vezes a palavra “paz” para sacramentar a falência da guerra
às drogas: “Vamos esperar que outro milhão de latino-americanos sejam
assassinados e que cheguem a 200 mil os mortos anuais por overdose nos Estados
Unidos?”
Se a expansão do aparato bélico americano
na Colômbia terá um freio, também parece improvável que EUA, em rota de
aproximação com a Venezuela pela segurança energética, continue a se armar em
direção à fronteira de Nicolás Maduro.
O professor de Relações Internacionais da
Fundação Getulio Vargas, Oliver Stuenkel, que esteve em rodada de conversas
recente com autoridades em Washington, acrescenta as incógnitas que cercam a
base espacial chinesa em Neuquén, Argentina, entre os motivos pelos quais a
parceria militar americana com o Brasil ganha relevância no momento.
A renovada importância estratégica do Brasil
nesta conjuntura continental, aliada à existência de um presidente que ameaça
diuturnamente a democracia no Brasil, pareceu, aos congressistas americanos, um
momento apropriado para a tentativa de impedir a venda deste sistema
antimísseis.
Foi sob este pano de fundo que o secretário
de Defesa americano, Lloyd Austin, desembarcou no Brasil em julho para um
encontro de ministros de Defesa. Anunciou que, em 2023, seu país alocaria US$
115 milhões para um continente unido no “compromisso com o Estado de direito e
a devoção à democracia”.
Em entrevista, foi além. Disse ter
reafirmado aos colegas que o papel do Exército numa sociedade democrática
passava pelo controle civil dos militares. Explicitava a necessidade de
colaboração, especialmente do anfitrião, o ministro Paulo Sérgio Oliveira, para
que o Congresso americano não encasquetasse com o Orçamento ali anunciado. A
reprimenda foi um vexame para o general brasileiro.
Àquela altura, o coronel Sant’Anna dava
livre curso à sua dupla militância, como perito de cibernética, no acesso a
dados sigilosos do TSE e na propagação de notícias falsas sobre o sistema
eleitoral. Foi preciso que o jornalista Rodrigo Rangel, do “Metrópoles”,
divulgasse seus afazeres, e que os ministros Edson Fachin e Alexandre de Moraes
afastassem o coronel da comissão, para que o caso ganhasse publicidade. Foi o
segundo vexame, em menos de um mês, mas Paulo Sérgio dobrou a aposta e não
indicou um substituto para o coronel.
Não surpreende que a confiança da população
nas Forças Armadas tenha chegado a um dos piores patamares de sua história.
Pela pesquisa Ipsos divulgada esta semana, apenas 30% dos brasileiros confiam
na instituição. Num conjunto de 28 países, o Brasil ocupa a 25ª posição em
confiança nos seus militares, com uma queda de cinco pontos percentuais do ano
passado para cá.
A decisão do governo americano pela venda
do sistema antimísseis ainda terá que ser referendada pelo Congresso. Um
observador que acompanha o tema em Washington diz que o recesso do Senado
impede que se avalie a chance de a venda ser referendada pelos congressistas,
mas o histórico de tramitação de temas afins favorece a expectativa de aval.
O governo americano decidiu vender armas
para um país, como a Arábia Saudita, apesar de dispor de relatórios de
inteligência sobre a participação do príncipe herdeiro no assassinato de um
jornalista saudita que atuava como colunista de um jornal americano. Por isso,
supor que a atuação de Bolsonaro, que chegou a duvidar da lisura da eleição de
Biden, venha a ser um impedimento desta venda, é um tributo à ingenuidade.
No império do pragmatismo, a melhor defesa
que os brasileiros podem arrumar para suas eleições está em atos como o desta
quinta-feira. A leitura da carta em defesa do estado de direito no Largo de São
Francisco, em São Paulo, e em faculdades de direito de outros 26 Estados é a
exibição do melhor arsenal democrático da praça.
Fato consumado.
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