Míriam Leitão - O que marcou o primeiro debate

O Globo

Bolsonaro perdeu para si mesmo, ao exibir sua raiva contra mulheres. Lula errou ao fugir do tema inescapável desta campanha

Lula perdeu no confronto direto com Bolsonaro, e Bolsonaro perdeu de si mesmo no debate da Band. O erro do presidente não foi um deslize. Foi a confirmação da sua verdadeira natureza. Ele detesta mulheres. O ataque à jornalista Vera Magalhães é coerente com todos os muitos ataques a todas as outras jornalistas, e a todas as mulheres ao longo da sua carreira e de seu mandato. O flanco foi aberto por ele, por decisão própria, e desse ponto em diante o debate foi outro, tanto que houve ao todo seis perguntas sobre mulher.

A grande dúvida sobre a qual todos os especialistas se debruçam é se debates mudam votos. A pesquisa do Ipec divulgada ontem mostrou, de novo, uma cristalização das intenções de votos tanto em Lula quanto em Bolsonaro: 44% a 32%. A mesma distância de 12 pontos entre os dois. A de quinta-feira, do Datafolha, poderá mostrar mais o efeito do debate. Bolsonaro precisa de pouco para o seu objetivo de curto prazo que é garantir que haja segundo turno. Reviravolta eleitoral é muito mais difícil de conseguir. Quando ele desferiu o ataque a Lula no item corrupção, tendo o vasto telhado de vidro que tem, o candidato do PT errou por fugir do tema inescapável na sua campanha. É absolutamente esperado que esse assunto surja muito ao longo dos debates e entrevistas e a desenvoltura mostrada pelo ex-presidente no Jornal Nacional não apareceu no confronto com os outros candidatos.

A economia está no centro das atenções dos eleitores, mas foi tratada com superficialidade e as mentiras de sempre no debate. A economia brasileira não vai bem, a inflação não é uma das menores do mundo, como disse Bolsonaro. Não adianta afrontar os fatos com frases de efeito ou estudos encomendados. O governo trocou o presidente do Ipea por um integrante da equipe de Paulo Guedes, Erik Alencar de Figueiredo. A situação no instituto de pesquisa está assim: os técnicos e pesquisadores são constrangidos a não darem qualquer opinião sob o argumento de que é tempo eleitoral. Já o presidente do órgão faz, ele mesmo, estudos de encomenda para Bolsonaro usar em debates e entrevistas usando o bom nome do órgão. Por isso, Bolsonaro afirmou no debate que “um estudo do Ipea” mostrava a queda da pobreza. Um dos supostos estudos tenta provar que há um potencial de queda da extrema pobreza para 4,1 milhões de pessoas no fim do ano, mas admite que no ano passado subiu para 6 milhões. Bolsonaro já afirma que o atual número é de 4 milhões. Ou seja, se a projeção é duvidosa, pior é tratá-la como verdade, hoje. Em outro, defende-se a tese de que não houve aumento da fome porque não há registro de elevação das doenças ligadas à fome.

A questão é: negar a realidade que está posta diante de nós, diariamente, de forma excruciante, funciona? Certamente não. Quando se distribui recursos públicos, uma hora o número de famílias em situação de pobreza ou miséria deve cair, mas o fato é que não há garantia do valor. A inflação de alimentos tem permanecido alta, reduzindo o poder de compra dos brasileiros mais pobres.

Lula comete o erro de falar do passado. Não é verdade que ele pegou o país quebrado, mas é verdade que ele fez uma extraordinária acumulação de reservas cambiais que nos tirou das angustiantes crises cambiais. O mais relevante é que falta a ele dizer como pretende enfrentar os problemas de agora.

Na área ambiental, Lula disse que o seu governo conseguiu a menor taxa de desmatamento do Brasil. As agências de checagem já disseram que esse ponto foi conseguido em 2012, no governo Dilma. Então, objetivamente, ele errou. Mas o governo dele é que elaborou o plano que realmente enfrentou o desmatamento. Na gestão Marina Silva, e com a autorização do então presidente Lula, o problema foi atacado com firmeza. No governo Lula se criou a dinâmica que levou de 27 mil km2 a 4,6 mil km2 de desmatamento.

Esse debate ficará conhecido como o da misoginia de Jair Bolsonaro. Ele ofendeu de forma gratuita e indigna tanto a jornalista Vera Magalhães quanto a senadora Simone Tebet. Tebet havia falado sobre o que viu na CPI da Covid, e Vera havia feito uma bem fundamentada pergunta sobre a queda da cobertura vacinal no país, um problema gravíssimo. Nada explica os ataques de Bolsonaro a não ser, como disse Simone Tebet, a raiva contra as mulheres. Uma raiva que ele carrega, não controla e que explodiu no colo dele no meio do debate.