quarta-feira, 24 de agosto de 2022

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

Editoriais / Opiniões

Bolsonaro mente e é autoritário — mas não perde o prumo

O Globo

Entrevista ao JN demonstrou por que, apesar das barbaridades, ele continua um candidato competitivo

Sobraram mentiras e faltou um compromisso inequívoco com o respeito ao resultado das urnas na entrevista que o presidente Jair Bolsonaro concedeu à bancada do Jornal Nacional como candidato à reeleição. Nisso, não houve surpresa. A novidade foi o comportamento mais sereno que tentou adotar, é verdade que nem sempre com sucesso.

Cobrado a assumir o compromisso público de que não contestará o resultado da eleição, Bolsonaro adotou uma postura ambígua que lhe permite, ao mesmo tempo, dizer aos críticos que recuou e afirmar ao aduladores que foi coerente. Depois de um vaivém de perguntas precisas e respostas evasivas, disse que poria um “ponto final” e aceitaria o resultado desde que as eleições fossem “limpas e transparentes”. É pouco, pois manteve uma brecha aberta a futuras contestações — e confusão — caso perca. Também atribuiu às Forças Armadas o papel de árbitro do assunto, absurdo que não encontra amparo constitucional. Seu lado autoritário transpareceu quando se negou a criticar seguidores que defendem a ditadura e um golpe para mantê-lo no poder. “Quando alguns falam em fechar o Congresso, é liberdade de expressão deles”, afirmou. “Eu não levo para esse lado.” Como Pilatos, lavou as mãos do golpismo que ele mesmo incentivou.

A entrevista também deixou claro seu pendor incorrigível pela mentira. Negou ter xingado integrante do Supremo, apenas para ser contestado e se ver obrigado a admitir que chamou o ministro Alexandre de Moraes de “canalha”. Disse que, na pandemia, o governo socorreu Manaus em dois dias, quando o oxigênio levou nove para chegar, enquanto a cidade vivia um morticínio sem paralelo. Negou ter imitado pacientes de Covid-19 com falta de ar, quando as imagens estão ao alcance de qualquer cidadão.

Questionado sobre a pandemia, insistiu na barbaridade do “tratamento precoce” à base de cloroquina e mentiu ao dizer que não atrasou a encomenda de vacinas. Afirmou que o Brasil teve bom desempenho ao lidar com a crise sanitária, quando a mortalidade brasileira está entre as maiores do mundo. O pedido de desculpas aos parentes dos mortos pela Covid-19 nunca veio.

Não logrou dar explicação convincente a respeito do caos no Ministério da Educação. Sobre a destruição da Amazônia, apelou para a falácia de que o Brasil preserva mais território que outros países e disse que florestas também pegam fogo na França, na Alemanha ou na Califórnia.

Quando o assunto mudou para a economia, pôs a culpa pela inflação na guerra na Ucrânia (faltou explicar por que ela está em dois dígitos desde seis meses antes de o primeiro tanque russo invadir o território ucraniano). Na tentativa de atrair votos fora de sua bolha, deu uma resposta ardilosa sobre o Centrão — se não negociasse com os políticos, seria “ditador” —, propagandeou os programas assistenciais, a queda no preço dos combustíveis, a deflação recente e os indicadores favoráveis.

As barbaridades de Bolsonaro eram esperadas, por isso não terão custo eleitoral tão alto. Mais que perder com as mentiras ou o autoritarismo, ele deverá se beneficiar de outra faceta que a entrevista tornou evidente: o tom apaziguador. Mesmo questionado com dureza, quase não perdeu o prumo ao longo de 40 minutos. O novo comportamento contrasta com o destempero que tantas vezes manifestou e mostra que é um candidato competitivo.

Inadimplência recorde traz risco para cenário econômico em 2023

O Globo

Brasileiros que não conseguem honrar suas contas e dívidas chegam a quase 67 milhões

Um indicador claro das agruras por que têm passado os brasileiros é a inadimplência. Os que não conseguem honrar suas contas e dívidas chegaram a 66,8 milhões, um recorde. O consumidor não tem atrasado apenas o pagamento de empréstimos ou da fatura do cartão de crédito, mas também contas de luz e água. O aperto é inegável.

A principal causa é a alta no custo de vida, que corrói a renda e impõe a muitas famílias o dilema de comprar comida e remédios ou manter o nome limpo. Como mostrou reportagem do jornal Valor Econômico, a inadimplência começou a subir de forma consistente a partir de setembro do ano passado, quando a inflação nos 12 meses anteriores chegou a dois dígitos.

De lá para cá, 4,6 milhões de brasileiros entraram para a lista dos que têm contas em atraso, segundo dados da empresa Serasa Experian. Desde agosto de 2021, os inadimplentes cresceram quase 1 milhão só no estado de São Paulo, somando 15,7 milhões (o equivalente a 43,5% da população adulta). No Rio, o salto foi de 620 mil, chegando a 6,7 milhões (ou 49,5% da população adulta).

Em 2020, nos primeiros meses da pandemia, também houve piora nos índices que medem a saúde financeira das famílias brasileiras, mas na ocasião a situação de aperto não durou muito. A onda atual tem chamado a atenção não apenas pelos recordes, mas também pela duração.

Uma pesquisa da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) divulgada no começo do mês mostrou que quase 80% das famílias brasileiras com renda até dez salários mínimos (R$ 12.120) tinham dívidas em julho, o maior índice desde que o levantamento começou a ser feito, há 12 anos. Na comparação com julho de 2021, houve crescimento de seis pontos percentuais.

A alta dos juros, arma usada pelo Banco Central para combater a inflação, levou as famílias a mudar de estratégia. A proporção das endividadas no cartão de crédito ainda é alta (85,5%), mas vem caindo. É um indício, diz a CNC, de que os consumidores têm buscado alternativas de crédito mais baratas. É o caso do endividamento com carnês de lojas, que está aumentando.

O quadro atual torna o cenário para 2023 mais incerto. O gasto das famílias é um dos motores do crescimento da economia. Diante do aumento do endividamento e da inadimplência, fica mais difícil imaginar uma aceleração consistente puxada pelo consumo. Os brasileiros estão noutra “vibe”, cortando os supérfluos e concentrando gastos nas necessidades básicas. A propaganda eleitoral tenta disfarçar, mas a triste realidade é essa.

Lorotas em tela

Folha de S. Paulo

Hostil ao jornalismo, Bolsonaro renova aposta na confusão em entrevista ao JN

Dada a belicosidade com que Jair Bolsonaro (PL) trata a imprensa desde sua chegada à Presidência da República, temeu-se o pior em sua entrevista à bancada do Jornal Nacional, na noite de segunda (22).

No entanto, em lugar do valentão que insulta repórteres nas ruas, o que se viu na televisão foi um político acuado —capaz de exercer algum autocontrole, mas despreparado para um tipo de embate que evitou por três anos e meio.

Bolsonaro mentiu mais uma vez sobre suas ações na pandemia, seu descaso com as vítimas da Covid-19 e sua negligência com as vacinas. Desmentido pelos jornalistas, insistiu em lorotas que se desmancham no ar com um clique na internet.

Quando tentou negar as ofensas que dirigiu a ministros do Supremo Tribunal Federal repetidamente nos últimos meses, a dificuldade de sustentar a patranha ficou tão evidente que o mandatário se desconcertou e mudou de assunto.

Questionado sobre o que fará se perder as eleições, Bolsonaro disse que aceitará o resultado se elas forem limpas. Como não há razão para achar que não serão, a fórmula sibilina só serviu para manter acesa sua campanha de descrédito contra as urnas eletrônicas.

O presidente chegou a sugerir que uma decisão sobre a validade do pleito dependerá das Forças Armadas, que participam da fiscalização do processo a convite da Justiça Eleitoral. Mas não existe nada nas atribuições dos militares que permita tal interpretação.

Indiferente ao repúdio que suas ameaças golpistas receberam da sociedade e da política nas últimas semanas, Bolsonaro saiu em defesa dos apoiadores que pregam contra a ordem democrática, e disse que não cabe a ele desautorizá-los.

É possível que o presidente acredite que essa é mesmo a melhor estratégia para sua campanha à reeleição: investir na tensão entre as instituições para manter mobilizados seus seguidores mais fiéis.

Ele ganhou pontos nas últimas pesquisas, mas ainda está longe do primeiro colocado, Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Os números indicam que essa distância só diminuirá se ele conquistar eleitores que hoje descartam seu nome.

Os 40 minutos da entrevista, no telejornal de maior audiência da televisão brasileira, eram uma oportunidade, mas não houve aceno na direção dessas pessoas.

Indagado sobre as dificuldades econômicas que o país enfrenta e seus planos para um eventual segundo mandato, Bolsonaro foi incapaz de dar uma resposta objetiva, que oferecesse ao menos uma pista sobre o que pretende fazer.

Se a entrevista serviu para mostrar que a aposta na confusão continua sua opção preferencial, ficaram visíveis também as dificuldades que ele enfrenta na disputa.

Para inglês ouvir

Folha de S. Paulo

Ao pregar alternância de poder na Venezuela, Lula ensaia inflexão que soa frágil

"Defendo alternância de poder não só para mim. Desejo para a Venezuela e para todos os países. Não há presidente insubstituível. O Brasil vai tratar a Venezuela com respeito." A assertiva, proferida pelo presidenciável Luiz Inácio Lula da Silva (PT), encerra em si uma novidade e uma chave de compreensão.

É salutar enfim ouvir o ex-presidente brasileiro apoiar princípios democráticos na ditadura vizinha, após quase duas décadas de defesa intransigente do regime chavista.

O país no Caribe tinha excesso de democracia, chegou a dizer Lula quando titular do Planalto, em 2007. Assim, ainda que chame opositores de Nicolás Maduro de impostores, um direito seu que contradiz o discurso de respeito universal a resultados eleitorais, fica a sugestão de uma inflexão.

Para inglês ver, no caso, quase literalmente: a plateia de Lula na segunda-feira (22) era composta por jornalistas a serviço de órgãos de mídia internacionais. Já o trecho asseverando que o "Brasil vai tratar a Venezuela com respeito" indica o mais do mesmo do pensamento de política externa do PT.

Nos anos de Lula no poder, a autonomia possível e desejável na arena externa foi muitas vezes confundida com antiamericanismo pueril.

Pior, o amor sincero por ditaduras de esquerda, a começar pela romantizada Cuba castrista, virou política de Estado em ocasiões.

Quando as botas de soldados cubanos pisaram sobre manifestantes nos inauditos atos de 11 de julho de 2021, Lula preferiu dizer que o problema estava nos EUA, comparando a repressão insular a episódios de violência racial americanos.

São incontáveis os exemplos de tal visão tortuosa, ditada, sim, por afinidade ideológica —ainda que seja bastante claro que o antípoda do líder petista, Jair Bolsonaro (PL), provou-se no poder ser muito mais chavista do que o rival.

Numa visão otimista, um Lula de volta ao governo deixaria tais arroubos esquerdistas para o campo da retórica. Pode ser, mas a sequência de declarações do ex-presidente nesta fase da campanha tem deixado pistas de um outro caminho.

No mesmo dia em que ponderou sobre a Venezuela, o ex-presidente também afirmou que o Itamaraty e as Forças Armadas são órgãos de Estado e que, por isso, "serão aquilo que o governo quiser que seja".

Tal grau de incompreensão do arcabouço institucional é incompatível com a estatura pública de Lula, ainda mais quando ele ocupa a dianteira da corrida eleitoral.

Um presidente que nada tem a dizer

O Estado de S. Paulo

Quando questionado no ‘Jornal Nacional’ sobre quais são seus projetos para o País, Bolsonaro deixou claro que não os tem

Para qualquer candidato que disputa a eleição presidencial, a campanha é uma oportunidade única para conquistar votos entre os eleitores que não fazem parte de sua bolha de apoiadores. Se nos tradicionais debates é preciso disputar espaço com os opositores, o formato das sabatinas proporciona uma chance singular de apresentar projetos mais estruturados para públicos mais diversos. O presidente Jair Bolsonaro, no entanto, desperdiçou um espaço raro no principal telejornal da rede de televisão aberta. Nos 40 minutos que teve à sua disposição no Jornal Nacional, expôs a essência de um governo sem qualquer projeto de País e que continua a apostar no diversionismo de temas laterais para tentar se reeleger. De tudo o que o presidente falou, o que chamou a atenção foi o absoluto vazio de ideias no que diz respeito aos planos para o futuro da economia.

Quando Bolsonaro ainda era apenas um candidato, seu desconhecimento sobre o tema garantiu protagonismo ao então assessor e futuro ministro Paulo Guedes. Agora, é natural e esperado que o presidente ajuste seu discurso, até porque a prática de seu governo se mostrou bastante diferente do que dizia na campanha. Não foram poucas as vezes em que Bolsonaro desautorizou Guedes e defendeu o oposto do que o ministro pregava, participando ativamente de discussões que levaram à destruição do teto de gastos, ao loteamento do Orçamento, à ampliação da isenção fiscal das igrejas, à intervenção na Petrobras, à expansão dos privilégios dos militares e às reduções de impostos à custa de Estados e municípios. Entre muitos outros exemplos, todas essas medidas foram adotadas por orientação expressa do presidente, independentemente dos impactos sobre as contas públicas, e contribuíram para minar a confiança na economia, elevar a inflação, aumentar os juros e desvalorizar o câmbio.

É verdade que essas condições não são uma exclusividade nacional. Em maior ou menor grau, todos os países foram afetados pelos impactos da pandemia de coronavírus e da guerra na Ucrânia. Mas, a julgar pelas pesquisas eleitorais, utilizar esses fatores para justificar a incompetência de seu governo não tem sido uma estratégia convincente. Afinal, a economia brasileira tem suas particularidades. O eleitor sabe que a queda dos combustíveis nem de longe compensou uma inflação de alimentos de quase 15% em 12 meses; sabe que a redução do desemprego não tem sido acompanhada pela melhoria da renda; sabe que o aumento dos juros levou a inadimplência a níveis recorde. É nesse contexto que o despreparo que Bolsonaro demonstrou na sabatina se destaca ainda mais. Diante de uma pergunta simples e até óbvia sobre o que faria caso fosse reeleito para garantir inflação sob controle, juros baixos e um câmbio favorável, o presidente parece renovar a esperança na condescendência que recebeu da maioria da população em 2018. Sobre o passado recente, disparou um arsenal de desculpas para se livrar de suas responsabilidades. Sobre o futuro, Bolsonaro simplesmente não teve nada a dizer.

O voto é exercício de liberdade

O Estado de S. Paulo

As grandes taxas de rejeição de Lula e Bolsonaro expõem os imensos problemas envolvendo as duas candidaturas. É tempo de o eleitor conhecer bem os outros candidatos e suas propostas

Conforme mostrou o Estadão, grande parte do eleitorado diz ter medo da volta do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ao poder e da reeleição do presidente Jair Bolsonaro (PL). Os dois candidatos à frente nas pesquisas de intenção de voto têm grandes taxas de rejeição: 45% dos eleitores têm medo da continuidade do atual governo e 40% temem um novo mandato de Lula.

Tais rejeições não se baseiam em fake news. O eleitor tem motivos de sobra para temer ambos os candidatos. Assim, esse sentimento de temor não é necessariamente algo ruim para o exercício dos direitos políticos. Antes, representa a democracia em seu normal funcionamento, com o eleitor sabendo identificar, na prática, o que faz mal ao País.

Segundo as pesquisas de opinião, os motivos do medo a Lula e a Bolsonaro relacionam-se com fatos concretos das trajetórias dos dois candidatos. O eleitor teme que, com o retorno do PT ao poder, voltem a corrupção, o alinhamento internacional com ditaduras de esquerda e o fortalecimento de pautas minoritárias, como a descriminalização do aborto e das drogas. Com eventual reeleição de Bolsonaro, o medo é de aumento da pobreza, acirramento do discurso de ódio, isolamento internacional, incompetência na gestão pública e, no limite, uma ruptura com a ordem constitucional democrática.

Tal cenário revela que cerca de metade da população tem uma apreciação realista de quem é Lula e do que representa a volta do PT ao poder. E que a outra metade da população, que rejeita o bolsonarismo, entendeu bem o que significa Jair Bolsonaro na Presidência da República. Ao contrário do que às vezes se diz, o eleitor não está inteiramente desinformado – e não tem uma memória assim tão curta.

Perante essa situação de amplas taxas de rejeição aos dois primeiros colocados nas pesquisas de opinião, duas conclusões se impõem. A primeira é a de que escolher um candidato simplesmente por rejeição ao outro pode ser um grande equívoco, uma vez que tanto Lula como Bolsonaro têm grandes problemas – que são percebidos e temidos por grandes parcelas da população. Os erros de um não tornam o outro uma boa solução para o País.

A segunda conclusão refere-se a um aspecto fundamental do regime democrático e do exercício dos direitos políticos. O eleitor não precisa escolher unicamente entre Jair Bolsonaro e Luiz Inácio Lula da Silva. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) informou que recebeu, neste ano, 12 pedidos de registro de candidatura para a eleição presidencial. Além dos candidatos do PL e do PT, há Simone Tebet (MDB), Sofia Manzano (PCB), Soraya Thronicke (União Brasil), Vera Lúcia (PSTU), Ciro Gomes (PDT), Felipe D’Avila (Novo), Léo Péricles (Unidade Popular), Pablo Marçal (PROS) e Roberto Jefferson (PTB).

As grandes taxas de rejeição de Lula e de Bolsonaro devem ser um estímulo para a população conhecer a fundo, durante o período de campanha eleitoral, os demais candidatos, suas trajetórias e suas propostas. Há um regime de pluripartidarismo, com múltiplos candidatos. Nada obriga o eleitor a limitar sua escolha entre duas opções ruins, que despertam grandes e fundados temores. É precisamente para assegurar a mais ampla possível liberdade de escolha que a Constituição de 1988 prevê a possibilidade de dois turnos, em caso de um candidato não alcançar, no primeiro escrutínio, a maioria absoluta dos votos válidos nas eleições para presidente da República, governador e prefeito (nos municípios com mais de 200 mil eleitores).

Não há nenhum problema no chamado “voto útil”, quando o eleitor antecipa, no primeiro turno, sua definição última de prioridades e rejeições. O problema está quando o voto, seja no primeiro ou no segundo turno, é definido por simples medo, sem atentar para as reais qualidades e deficiências do candidato no qual se vota. E é sempre bom lembrar: até o dia das eleições, nenhum candidato tem um voto sequer. Todos estão na mesma situação. Que o eleitor possa escolher livre e responsavelmente quem ele considera ser a melhor opção para o País.

O Ipea deve ser autônomo

O Estado de S. Paulo

Ao apresentar estudo para contestar a dimensão da fome no País, dado que prejudica a campanha de Bolsonaro, presidente do Ipea envolve a instituição de pesquisa na disputa eleitoral

Em estudo de sua lavra apresentado no Planalto, o presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Erik Alencar de Figueiredo, contestou o aumento da fome no Brasil, despertando apreensões em relação à autonomia e à credibilidade científica do órgão. Não pelo questionamento em si, mas pelo momento e o modo como foi feito.

Decerto ele choca ao colidir com aquilo que qualquer habitante das metrópoles vê a olho nu: a população de miseráveis que se alastra nas ruas. Mas o ceticismo é a alma da ciência. Afinal, todos os dias vemos o Sol girar ao redor da Terra.

Recentemente, a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional apontou que 33,1 milhões de brasileiros passam fome. Pouco depois, a ONU computou 15,4 milhões. A disparidade – mais que o dobro – é inquietante. Qual a dimensão da fome no Brasil? Quais os critérios para aferi-la?

São respostas cruciais para planejar políticas públicas. A função de fundações e institutos públicos, como o Ipea ou o IBGE, é justamente subsidiar essas políticas com informações confiáveis. Eles são parte da administração indireta do Estado, com autonomia administrativa e financeira. Sua credibilidade está alicerçada em uma atuação independente, como órgãos a serviço do Estado, e não porta-vozes do governo de turno. Nos anos 70, em plena ditadura, por exemplo, o Ipea foi o centro difusor de pesquisas e debates sobre os escandalosos índices de distribuição de renda no Brasil.

Enquanto órgãos públicos, pesa sobre eles uma especial responsabilidade em períodos eleitorais. Para não influenciar indevidamente os votos, é comum que seus dirigentes evitem dar entrevistas, até para não correr o risco de violar a legislação eleitoral, que proíbe a publicidade institucional em época de eleições. Não que devam deixar de divulgar pesquisas, muito menos de pesquisar. Na verdade, o comportamento indevido pode se dar não só pela propagação inadequada de dados sensíveis, mas pela sua omissão.

Muito da credibilidade do próprio Ipea foi arranhada por sonegação de informações de interesse público na gestão petista. Nas eleições de 2014, por exemplo, o órgão adiou, sob pressão, a divulgação de dados que desmoralizavam a propaganda de Dilma Rousseff sobre a queda da desigualdade. Dois dirigentes pediram exoneração em protesto contra essa “pedalada estatística”. Agora, o risco é inverso.

O argumento de Figueiredo – de que a escalada da fome deveria resultar em um choque expressivo nas internações por doenças decorrentes da fome e da desnutrição e nos nascimentos de crianças abaixo do peso – é até pertinente. Mas, em primeiro lugar, é suspeito que o material não tenha sido, como de praxe, discutido com outros pesquisadores ou submetido a seu parecer. De resto, ainda que legalmente Figueiredo tenha autonomia para divulgá-lo, seus critérios são questionáveis. Especialistas sugerem, por exemplo, que o impacto da desnutrição na rede hospitalar demora para acontecer.

São divergências que merecem um debate calcado no apuro científico. Mas, com dados tão sensíveis, esperava-se do presidente do Ipea mais prudência. Se não basta que a mulher de César seja casta, é preciso que pareça, tanto pior se ela parecer sem ser.

A ironia é que a escalada da fome foi justamente o pretexto para o governo concertar com o Congresso um “estado de emergência” e atropelar a Constituição, as regras fiscais e a ordem jurídica para distribuir pacotes de bondades em plenas eleições.

Perdido entre a aparência e a realidade, o governo precisa dirimir sua guerra intestina de narrativas: ou o País prospera a pleno vapor, deixando a fome para trás, ou há uma multidão agonizando na vala comum da miséria que precisa de seus auxílios. Em tempos de pós-verdade, ele pode até despejar “econometrias” e “evidências científicas” para sustentar, à sua conveniência, ambas as versões. Mas para o cidadão comum que põe o pé na rua é difícil negar a miséria que vê com seus próprios olhos, e, para as legiões que disputam restos em caminhões de lixo e ossos em açougues, as ponderações técnicas sobre a fome soam como piada.

Lei das estatais vira letra morta em assembleia da Petrobras

Valor Econômico

Governo passa por cima de lei que blinda estatais contra nomeações políticas

O presidente Jair Bolsonaro finalmente parece ter conseguido dobrar a Petrobras a seus desígnios e da maneira mais simples: desrespeitando a lei. Nem o presidente indicado, Carlos Paes de Andrade, nem dois conselheiros, Jônatas de Castro e Ricardo Soriano de Alencar, poderiam compor o comando da estatal. Na assembleia do dia 19, a vedação ao cargo para Castro e Alencar pelo Comitê de Elegibilidade, que seguiu à risca da lei das estatais, foi desconsiderada e ambos foram referendados para o conselho de administração da companhia.

O relacionamento de Bolsonaro com a Petrobras seguiu o mesmo percurso de seu governo em geral: errático e arbitrário. Reajustes de combustíveis sempre trouxeram dores de cabeça a dirigentes de países que, como o Brasil, tem uma estatal monopolista (ou quase) do setor. Já antes, como candidato à Presidência, Bolsonaro fez demagogia com a greve dos caminhoneiros, exigindo uma solução para o problema.

No governo, foi incapaz ou não quis encontrar maneiras de atenuar um problema que explodiria em suas mãos ainda em seu mandato. O presidente foi capaz da proeza de demitir três presidentes da Petrobras indicados pelo próprio governo, tudo porque o Planalto julgou que a forma de corrigir os preços da estatal estava errada e precisaria ser modificada - de fato, Bolsonaro não queria nada que lhe trouxesse problemas perto das eleições que se aproximavam. As demissões na cúpula da companhia, porém, não mudaram a política de preços da companhia.

Já dentro do ano eleitoral o governo resolveu jogar pesado para valer seus interesses, com a ajuda inestimável do Centrão. A primeira parte da operação foi retirar todos os impostos federais sobre combustíveis (custo estimado R$ 55 bilhões). A segunda, fazer os governadores pagarem parte da conta, aprovando no Congresso uma legislação que limitou as alíquotas de ICMS de bens essenciais, como combustíveis, gás de cozinha, transportes e telecomunicações à mediana do tributo sobre os demais itens, isto é 16%-17% (custo estimado para os Estados, algo em torno de R$ 65 bilhões).

De nada adiantaria fazer tudo isso se mais reajustes da Petrobras anulassem boa parte desse esforço. O Planalto tentou emplacar dois presidentes. Um convidado desistiu e o outro, que tinha conflito de interesses com a empresa, optou por não ir. Ao final, Bolsonaro foi buscar uma saída caseira, no ministério de Paulo Guedes, com Caio Andrade, então secretário de Desburocratização, Gestão e Governo Digital.

Bolsonaro foi mais longe e indicou para o conselho Jônathas de Castro, que é secretário executivo da Casa Civil e homem de confiança do ministro Ciro Nogueira, líder do PP, e o procurador da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional, Ricardo de Alencar. Andrade não tem o “notório saber” exigido para o cargo pela lei das estatais e não atende as condições estabelecidas ter pelo menos 4 anos de experiência em cargo de direção ou chefia superior em empresa do porte ou objeto similar ao da Petrobras. Ele mal completou 3 anos como membro do Conselho de Administração da PPSA, a estatal que cuida da venda do óleo pago ao governo dos campos leiloados sob o sistema de partilha.

A indicação de Jônathas e Ricardo fere a lei também. Como auxiliar de Ciro, participa de decisões que, do lado do acionista majoritário, podem influir nos destinos da companhia. Ricardo trabalha na PGFN, que foi e é parte litigante contra a Petrobras em disputas tributárias e judiciais. O conflito de interesses é direto.

Os dois conselheiros foram reprovados pelo Conselho de Elegibilidade, decisão ratificada pelo Conselho de Administração e não constavam do edital da assembleia extraordinária. O presidente da assembleia, porém, qualificou os pareceres do conselho de “opinativos” e ambos foram eleitos.

A indicação de Caio rendeu duas rodadas de redução de preços dos combustíveis em menos de um mês. As cotações internacionais recuaram, o que dá amparo técnico às decisões - que, no entanto, foram mais céleres que de costume. Suspeita-se que não haverá a mesma pressa se as cotações voltarem a subir. As ações do governo derrubaram a inflação e são apontadas todo dia pelo presidente, em campanha eleitoral, como um grande feito. O governo passou por cima da lei que blinda as estatais contra nomeações políticas - com a ajuda do Centrão, que voltou à Petrobras. A última nomeação do grupo foi a do célebre Paulo Roberto Costa.

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