quarta-feira, 24 de agosto de 2022

Daniel Rittner - Estatais querem uma nova lei do saneamento

Valor Econômico

Propostas serão apresentadas a presidenciáveis

No início, as privadas não eram nem um pouco privadas. As latrinas públicas de Roma podiam ter 20 assentos ou mais em íntima proximidade, com os usuários conversando animadamente, como hoje andamos juntos de ônibus. O rei Charles II (1660- 1685), da Inglaterra, levava ao banheiro dois assistentes. Em Londres, era comum observar cidadãos agachados em plena rua, aliviando-se à luz do dia.

O hábito das necessidades em solidão não veio acompanhado de cuidados coletivos. As fossas sépticas em bairros pobres da adensada capital britânica na revolução industrial raramente eram limpas e frequentemente transbordavam. Fezes humanas, bem como resíduos industriais e animais mortos, iam parar no rio Tâmisa. Ensaiou-se uma solução em 1778, quando foi patenteada a primeira descarga moderna. O tiro saiu pela culatra. As famílias passaram a despejar, no projeto de vaso sanitário, todos os restos das casas. Havia entupimentos e odores insuportáveis. O drama só foi resolvido com a invenção de Thomas Crapper (entendedores entenderão a excrescência do sobrenome, que é apenas acaso).

Crapper criou o vaso em U e a pequena cisterna elevada que solta água quando se puxa uma corrente. O advento, divulgado na Grande Exposição de 1850, encantou multidões, que se enfileiravam para experimentar o ruído e o redemoinho de água na privada. Cerca de 200 mil privadas já estavam em uso no fim daquela década em Londres, que construiu um sistema de esgoto pioneiro, com dois mil quilômetros de túneis e dutos.

O mundo mudou demais desde então. O esgoto tratado chega a 98% no Reino Unido, 98% nos EUA, 84% no Canadá, 81% no Japão, 78% no Chile, 67% no Egito, 57% no México... e só 50% no Brasil, conforme dados de 2020 do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento, um banco de indicadores do Ministério do Desenvolvimento Regional. São 5.336 piscinas olímpicas de esgoto in natura atirados por dia no mar e nos rios brasileiros. Uma vergonha.

O novo marco legal do saneamento básico, alvo de duas medidas provisórias de Michel Temer e finalmente aprovado no governo Jair Bolsonaro, é celebrado como um dos maiores avanços da agenda microeconômica no último mandato presidencial. Facilitou a entrada do capital privado no setor, estipulou a meta de universalização dos serviços até 2033, já permitiu a Alagoas e Amapá conquistar investimentos bilionários em novos contratos de concessão.

Apesar disso, as empresas estaduais de água e esgoto ainda são responsáveis pelo atendimento de quase 75% da população brasileira, em mais de 4 mil municípios. A Aesbe, associação que reúne essas estatais, apresentará nos dias 1º e 2 de setembro, em seu encontro anual em Brasília, um conjunto de propostas para representantes dos candidatos à Presidência da República. Há destaque para alguns pontos.

1) Retomada do crédito e simplificação do licenciamento: projetos na área de saneamento precisam de prazos menores e prioridade na fila dos órgãos ambientais, afirma o presidente da associação, Neuri Freitas, que também comanda a Cagece (CE).

O financiamento público é apontado como prioridade. A contratação de crédito às vezes tem duplicidade de análise e poderia ser encurtada para um ano. Alguns bancos federais só liberam recursos quando existe 50% de contrapartida por parte do tomador. O uso de “funding” do FGTS esbarra na burocracia da Caixa. Estados e municípios e Estados podem ter dificuldade, eventualmente, em estruturar fundos garantidores para PPPs.

Sete estatais, no Norte e no Nordeste, não comprovaram capacidade econômica para universalizar os serviços até 2033. Operadoras em capitais como Salvador e João Pessoa estão em situação irregular. O novo marco legal prevê que o financiamento público, nesses casos, deverá ser cortado e os serviços deverão ser licitados. Há grande risco, contudo, de judicialização. Ninguém sabe como isso vai terminar. Neuri acha que parar tudo, enquanto isso não se define, é o pior cenário para a ampliação da coleta e tratamento de esgoto.

2) Incidência de PIS/Cofins: hoje as empresas pagam 9,25% pelo regime não cumulativo. A preferência é por uma mudança para o cumulativo, cuja alíquota é de 3,65%. O saneamento tem uma cadeia verticalizada e seu principal insumo, a água, não gera créditos tributários. Essa mudança poderia liberar R$ 6 bilhões anuais em investimentos.

3) Política energética: energia é o segundo maior custo do saneamento e representa de 8% a 10% das despesas operacionais. Em 2018, definiu-se a redução gradual dos subsídios - à razão de 20% ao ano - nas tarifas das empresas. Esse desmame acaba em 2023. Para a Aesbe, é preciso repensar urgentemente o tema, diante do desafio que está posto.

Neuri lembra dos grandes eventos esportivos, como a Copa do Mundo e a Olimpíada, que tiveram leis especiais para sua execução. Elas determinaram tratamento extraordinário para questões como licenciamento e financiamento. “E por que não uma lei especial também para o saneamento?”, questiona ele, enfatizando que universalizar a oferta de água e o tratamento de esgoto será prioridade nacional nesta década. “Para isso, vamos precisar do público e do privado.”

Origem

As histórias relatadas no começo da coluna estão no livro “Em Casa - Uma Breve História da Vida Doméstica”, de Bill Bryson (Cia. das Letras).

Um comentário: