Valor Econômico
Propostas serão apresentadas a
presidenciáveis
No início, as privadas não eram nem um pouco
privadas. As latrinas públicas de Roma podiam ter 20 assentos ou mais em íntima
proximidade, com os usuários conversando animadamente, como hoje andamos juntos
de ônibus. O rei Charles II (1660- 1685), da Inglaterra, levava ao banheiro
dois assistentes. Em Londres, era comum observar cidadãos agachados em plena
rua, aliviando-se à luz do dia.
O hábito das necessidades em solidão não veio acompanhado de cuidados coletivos. As fossas sépticas em bairros pobres da adensada capital britânica na revolução industrial raramente eram limpas e frequentemente transbordavam. Fezes humanas, bem como resíduos industriais e animais mortos, iam parar no rio Tâmisa. Ensaiou-se uma solução em 1778, quando foi patenteada a primeira descarga moderna. O tiro saiu pela culatra. As famílias passaram a despejar, no projeto de vaso sanitário, todos os restos das casas. Havia entupimentos e odores insuportáveis. O drama só foi resolvido com a invenção de Thomas Crapper (entendedores entenderão a excrescência do sobrenome, que é apenas acaso).
Crapper criou o vaso em U e a pequena
cisterna elevada que solta água quando se puxa uma corrente. O advento,
divulgado na Grande Exposição de 1850, encantou multidões, que se enfileiravam
para experimentar o ruído e o redemoinho de água na privada. Cerca de 200 mil
privadas já estavam em uso no fim daquela década em Londres, que construiu um
sistema de esgoto pioneiro, com dois mil quilômetros de túneis e dutos.
O mundo mudou demais desde então. O esgoto
tratado chega a 98% no Reino Unido, 98% nos EUA, 84% no Canadá, 81% no Japão,
78% no Chile, 67% no Egito, 57% no México... e só 50% no Brasil, conforme dados
de 2020 do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento, um banco de
indicadores do Ministério do Desenvolvimento Regional. São 5.336 piscinas
olímpicas de esgoto in natura atirados por dia no mar e nos rios brasileiros.
Uma vergonha.
O novo marco legal do saneamento básico,
alvo de duas medidas provisórias de Michel Temer e finalmente aprovado no
governo Jair Bolsonaro, é celebrado como um dos maiores avanços da agenda
microeconômica no último mandato presidencial. Facilitou a entrada do capital
privado no setor, estipulou a meta de universalização dos serviços até 2033, já
permitiu a Alagoas e Amapá conquistar investimentos bilionários em novos contratos
de concessão.
Apesar disso, as empresas estaduais de água
e esgoto ainda são responsáveis pelo atendimento de quase 75% da população
brasileira, em mais de 4 mil municípios. A Aesbe, associação que reúne essas
estatais, apresentará nos dias 1º e 2 de setembro, em seu encontro anual em
Brasília, um conjunto de propostas para representantes dos candidatos à
Presidência da República. Há destaque para alguns pontos.
1) Retomada do crédito e simplificação do
licenciamento: projetos na área de saneamento precisam de prazos menores e
prioridade na fila dos órgãos ambientais, afirma o presidente da associação,
Neuri Freitas, que também comanda a Cagece (CE).
O financiamento público é apontado como
prioridade. A contratação de crédito às vezes tem duplicidade de análise e
poderia ser encurtada para um ano. Alguns bancos federais só liberam recursos
quando existe 50% de contrapartida por parte do tomador. O uso de “funding” do
FGTS esbarra na burocracia da Caixa. Estados e municípios e Estados podem ter
dificuldade, eventualmente, em estruturar fundos garantidores para PPPs.
Sete estatais, no Norte e no Nordeste, não
comprovaram capacidade econômica para universalizar os serviços até 2033.
Operadoras em capitais como Salvador e João Pessoa estão em situação irregular.
O novo marco legal prevê que o financiamento público, nesses casos, deverá ser
cortado e os serviços deverão ser licitados. Há grande risco, contudo, de
judicialização. Ninguém sabe como isso vai terminar. Neuri acha que parar tudo,
enquanto isso não se define, é o pior cenário para a ampliação da coleta e
tratamento de esgoto.
2) Incidência de PIS/Cofins: hoje as
empresas pagam 9,25% pelo regime não cumulativo. A preferência é por uma
mudança para o cumulativo, cuja alíquota é de 3,65%. O saneamento tem uma
cadeia verticalizada e seu principal insumo, a água, não gera créditos
tributários. Essa mudança poderia liberar R$ 6 bilhões anuais em investimentos.
3) Política energética: energia é o segundo
maior custo do saneamento e representa de 8% a 10% das despesas operacionais.
Em 2018, definiu-se a redução gradual dos subsídios - à razão de 20% ao ano -
nas tarifas das empresas. Esse desmame acaba em 2023. Para a Aesbe, é preciso
repensar urgentemente o tema, diante do desafio que está posto.
Neuri lembra dos grandes eventos
esportivos, como a Copa do Mundo e a Olimpíada, que tiveram leis especiais para
sua execução. Elas determinaram tratamento extraordinário para questões como
licenciamento e financiamento. “E por que não uma lei especial também para o saneamento?”,
questiona ele, enfatizando que universalizar a oferta de água e o tratamento de
esgoto será prioridade nacional nesta década. “Para isso, vamos precisar do
público e do privado.”
Origem
As histórias relatadas no começo da coluna estão no livro “Em Casa - Uma Breve História da Vida Doméstica”, de Bill Bryson (Cia. das Letras).
Vivemos em meio a fezes,que horror!
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