Folha de S. Paulo
Nunca é demais lembrar que fora da lei só
há a barbárie
Como explicar a
união de empresários, sindicalistas e movimentos sociais em torno de
uma ideia tão abstrata como a de "Estado de Direito"? Entre os
inúmeros ideais políticos —como democracia, liberdade ou igualdade— que
historicamente mobilizam milhões de pessoas ao redor do mundo, certamente o
Estado de Direito é dos mais enigmáticos.
Creio que a ampla adesão a esse ideal
decorra das múltiplas dimensões e funções desempenhadas pelo Estado de Direito.
Em uma dimensão elementar, Estado de Direito significa um ambiente em que a
maior parte dos membros da comunidade age em conformidade com a lei, mesmo
quando isso signifique contrariar os próprios interesses ou paixões. Essa é a
dimensão constitutiva da própria ideia de civilização, pela qual o Estado de
Direito se apresenta como contraposição à barbárie.
Numa segunda dimensão —também chamada de burguesa—, o Estado de Direito designa não apenas que as pessoas se conduzam de acordo com a lei, mas que o próprio Estado e aqueles que exercem o poder, que as produzem e aplicam, também se encontram submetidos ao Direito, tal como expresso pela Constituição. A principal virtude desse arranjo, além da contenção do arbítrio por parte dos poderosos, é assegurar a previsibilidade nas relações sociais e especialmente na esfera econômica, indispensável ao desenvolvimento econômico. Essa é a razão pela qual o governo das leis atrai empresários e investidores.
A esquerda, desde de sua origem,
desconfiou, no entanto, da ideia de Estado de Direito. Esse mau humor com o
governo das leis apenas começou a mudar com o impacto devastador dos regimes de
exceção (estados de não Direito) implementados pelo totalitarismo e pelo
autoritarismo, no século passado. A tortura, as execuções em massa, os
desaparecimentos, a segregação racial, a censura e a eliminação dos adversários
alertaram para a importância do Estado de Direito, qualquer que fosse sua
origem ideológica.
O grande historiador marxista E. P.
Thompson, embora sempre tenha realizado uma crítica mordaz ao emprego de leis
injustas para oprimir os mais pobres, causou perplexidade à esquerda ao se
referir ao Estado de Direito como um "bem humano incomensurável". Por
ser estruturado a partir de regras gerais e do devido processo legal, que
constituem sua moralidade interna, o estado de Direito adquire certa autonomia
do poder, restringindo as oportunidades para a manipulação e o arbítrio pelos
poderosos.
O Estado de Direito, quando impactado pela
democracia e devidamente acessado pelos setores vulneráveis, pode, inclusive,
servir à promoção da igualdade e, eventualmente, da própria Justiça. Isso
explica por que muitos movimentos emancipatórios também passaram, ao redor do
mundo, a empregar a linguagem de direitos e defender o primado do Estado de
Direito.
Neste 11 de agosto, testemunhamos distintos
setores da sociedade brasileira, que vão da Coalizão Negra por Direitos à
Federação dos Bancos —passando por milhares de cidadãos entre os quais
policiais, médicos e desempregados— virem a público manifestar seu
"compromisso inarredável com o Estado de Direito".
Apenas desdenharam dos atos em defesa do
Estado de Direito aqueles que não se encontram dispostos a conjugar a sua
gramática básica; em particular, a premissa de que ninguém, por mais poderoso
que seja, está acima da lei. E nunca é demais lembrar que fora da lei só há a
barbárie.
*Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP.
Excelente artigo,merece um prêmio.
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