Folha de S. Paulo
Qualquer que seja o resultado de outubro,
teremos de lutar pela democracia
A leitura
das cartas em defesa das liberdades, nesta quinta (11), marca um momento
notável da história brasileira. Começamos, como país, a renascer de um desastre
civilizatório. Brotam esperanças na terra crestada. E isso implica reconhecer
que há destruição e cinzas.
Qualquer que seja o resultado da eleição de
outubro, viveremos dias atribulados. Não haverá o descanso à sombra depois da
batalha. Se Bolsonaro vencer, tentará, pela via legislativa, destruir uma
democracia já lanhada, buscando emparedar o Supremo. Se o vitorioso for Lula,
seus eventuais erros serão o menor dos nossos problemas. A extrema direita
continuará a atacar as instituições.
Defendi, como sabem, desde a primeira hora, que os desiguais se juntassem em favor daquilo que lhes permite serem quem são: o regime de liberdades e de triunfo da lei sobre a vontade dos mais fortes. Sou signatário inicial da "Carta às Brasileiras e aos Brasileiros em Defesa do Estado de Direito", que mereceu leitura solene na São Francisco e outras faculdades e universidades Brasil afora.
Cobrei
aqui com dureza o capital: a ditadura lhes serve? E, por isso, saudei
com entusiasmo o documento "Em Defesa da Democracia e da Justiça". O
capital está lá. Mas também os trabalhadores, os cientistas, os defensores dos
direitos humanos e os ambientalistas.
Na terra dos 700 mil mortos de doença, de
susto, de bala, de vício, de desídia e delinquência praticadas por um governo
fanaticamente criminoso, surge uma vereda. Parece ter acordado aquele bem
imaterial, sempre intangível, mas que pode operar prodígios: a sociedade civil.
Estávamos todos aterrados pela estupefação, pelo choque e pela incredulidade.
Era como se nos disséssemos: "Não é possível! Isso não está
acontecendo!" E, no entanto, estava e está.
Fanfarrão Minésio tripudia sobre corpos
pretos com ainda mais armas. Ironiza as vítimas da Covid, escarnecendo de
pessoas sufocadas por falta de oxigênio. Impregna a fé de milhões com
obscurantismo e faz pouco caso da ciência. Condena, em suma, o país a morrer
ensimesmado em suas "vastas solidões".
E na gente, como em "Rosa dos
Ventos", de Chico Buarque, deu o hábito "De caminhar pelas trevas/ De
murmurar entre as pregas/ De tirar leite das pedras/ De ver o tempo
correr". Mas, quero crer, despertamos a tempo. Não na forma de um estrondo
ou de uma "explosão atlântica" —porque os tempos não comportam mais
disrupções, libertadoras ou não—, mas de suspiros organizados com calma, com
método, com racionalidade.
Precisamos resgatar a ordem legal dos
escombros a que a condenaram lavajatismos e outros salvacionismos da
destruição. É a precondição para que se cumpra o desiderato da Constituição: a
justiça, muito especialmente a social, sem a qual a outra se perde em
beletrismo da igualdade.
Este escriba, diga-se, tem o espírito mais
propenso à divergência do que à convergência. Amigos reclamam às vezes que
costumo emprestar conteúdo a uma expressão meramente fática da linguagem, que
serve apenas para manter aberto o canal de comunicação. Ou por outra: se falam
comigo e pontuam a conversa com o "não é?", mesmo na forma contraída
"né?", interrompo: "Não é!" Com alguma frequência, o
interlocutor se surpreende: "Não é o quê?" Respondo: "Isso que
você está dizendo... Eu não concordo". E ouço então: "É só modo de
falar..." Mas eu presto atenção aos modos.
Ocorre que o meu rigor com as palavras que
exercitam o direito de dissentir e a minha individualidade radical, das quais
não abro mão por nada ou ninguém, têm um pressuposto: a vigência das regras do
jogo que me permitem ser quem sou. Se estão sob ameaça, e estão, então sou todo
mundo porque sou ninguém. Viro multidão e me junto a manifestos.
Não nos afastemos muito. Os dias vindouros
terão de ser dedicados à defesa das conquistas civilizatórias e do estado de
direito. Essa batalha está só no começo. Mesmo derrotadas, as forças que
Bolsonaro representa não desistirão de golpear o país. A fera carnívora não se
torna herbívora porque lhe escapou uma presa. Só espera uma nova oportunidade.
Ou, para repetir frase famosa, "a cadela do fascismo está sempre no
cio".
O pior é que o fascismo tem milhões de adeptos Brasil afora.
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