quarta-feira, 3 de agosto de 2022

Roberto DaMatta* - Brasileiros desconfiam de ascensão social

O Globo

Ninguém acredita que não exista algo por trás de um sucesso que ameaça o ideal reacionário de imobilidade

Um amigo ganhou um prêmio de uma sociedade literária. O prêmio inclui uma quantia em dinheiro.

Seus amigos e colegas viram como um reconhecimento, pois o premiado tem uma longa vida profissional como especialista em “ciências ocultas e letras apagadas”, como diz, citando o Millôr, quando se refere às disciplinas humanas.

Alguns mencionaram “a graninha boa”, reduzindo o prêmio ao dinheiro, e não ao reconhecimento de uma obra. Um parvo falou que ele recebia o prêmio porque escreveu sobre temas populares, esquecendo um detalhe capital: nas ciências humanas, o que conta não é bem do que se fala, mas como se fala. Pois o trivial é assumir o senso comum, e o extraordinário é lançar sobre o familiar um olhar que equilibra familiaridade e estranhamento. Falar de futebol como um jogo é uma coisa. Falar dele como um ritual competitivo promotor de uma experiência de igualdade — de respeito a normas impessoais de todos conhecidas — é tentar entendê-lo por meio de uma visão não rotineira.

Um conhecido lembrou a frase atribuída a Tom Jobim:

— No Brasil, o sucesso é uma ofensa pessoal...

Discutir por que vemos o sucesso do outro como ofensa é importante para compreender o Brasil. Pois a reação negativa ao sucesso aponta uma visão em que o êxito é concebido como um bem limitado, tal como assinalou o antropólogo George M. Foster num ensaio nascido de pesquisas sobre as orientações culturais latino-americanas.

Nele, Foster chama a atenção para essa concepção em que o êxito de alguém inibe o dos outros, que deixam de ganhar, pois o bem seria limitado.

Trata-se, diria eu, ampliando o insight de Foster, de um óbvio sintoma de sociedades mais relacionais e hierárquicas que individualistas. Sistemas conservadores e elitistas, que bloqueiam a ascensão social, pois cada qual deve ficar feliz em seu lugar, satisfazendo às diretrizes dos segmentos superiores. Nesses sistemas, há a ideia de que o lugar de cada um é fixo, de modo que os elos de todos com todos confirmam ou causam revolta quando um deles se destaca e, assim, alcança a faixa dos que “nascem feitos” ou dos “grandes” — os que tudo podem...

A ideia oculta de que o poder, o prêmio e a felicidade são limitados contrasta com o “fazer-se a si mesmo” comum e surpreendente em outros sistemas. A busca de construir-se a si mesmo é certamente ofensiva nas sociedades em que “ficar rico”, ou “subir na vida”, é visto como ambição pecaminosa ou esperteza, pois normalmente cada qual deveria contentar-se com seu lugar. Se a ânsia por “subir na vida” é reprimida, o sucesso tem de vir de fora. Do elo com alguém poderoso, por sorte ou milagre.

A ascensão social promove desconfiança mesmo sendo merecida. Em sociedades como a nossa, conservadora e hierarquizada, surgem os malandros e os conspiradores, pois ninguém acredita que não exista algo por trás de um sucesso que ameaça o ideal reacionário de imobilidade.

Donde o populismo e seus irmãos: o salvacionismo e o negacionismo, tão nossos conhecidos. Neles há a suposição de que os integrantes do sistema contam pouco, e a presente crise é uma prova de que cada vez mais sabemos que os “salvadores da pátria” acabam salvando suas famílias e contas bancárias, pois quem pode nos salvar mudando o sistema somos nós mesmos — os cidadãos comuns que começam a deixar de crer que existe um bem limitado para engendrar um sistema aberto, em que todos são premiados por seus talentos.

*Roberto DaMatta, antropólogo e escritor, recebeu o Prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras pelo conjunto de sua obra

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