O Estado de S. Paulo
Cabe-nos seguir com seminários e pesquisas
que enfrentam, no qualificado debate das ideias, a agenda da atualidade do
Brasil e do mundo.
A convergência dos atributos de grande
intelectual e de notável homem público assinala a identidade de FHC. Integra o
capital simbólico da Fundação Fernando Henrique Cardoso (FFHC), por ele criada
e concebida como instituição apartidária voltada para pesquisar e debater a
agenda do presente na perspectiva do futuro. Alinha-se à sua recorrente
preocupação intelectual em captar o novo que aflora na dinâmica dos processos
sociais, econômicos e políticos.
Assumi este ano a presidência do Conselho
da fundação, por indicação de FHC e com o apoio da governança da instituição.
FHC avaliou que, nesta fase de sua vida, precisava diminuir os encargos de suas
atividades, permanecendo na fundação com a auctoritas de presidente
de honra.
Refleti sobre o desafio desta incumbência em relação aos caminhos da fundação com o lastro de quem dela participou desde o início e no espírito de parceria e da amizade que desde sempre me une a FHC.
Dizia Padre Antonio Vieira, explicando por
que Davi recusou as armas de Saul e recorreu às suas próprias para enfrentar o
gigante: “Com as armas alheias ninguém pode vencer, ainda que seja Davi”. FHC
venceu nas muitas esferas da vida com as suas próprias armas, as de um grande
intelectual.
Cabe pontuar que em sociedades modernas,
complexas e secularizadas existe um papel próprio para o intelectual. Este se
desdobra na palavra que articula rumos e princípios no trato das incertezas e
das transformações e no saber técnico e dos conhecimentos para efetivar na
realidade as diretrizes dos rumos.
No jogo da política e da governança, um
intelectual pode se dedicar a criticar o poder, legitimar o poder, assessorar e
influenciar o poder, exercer as responsabilidades do poder. FHC exerceu todas
essas atividades e sua rica experiência nesta matéria é parte do legado e do
capital simbólico da fundação que leva o seu nome.
Nesta matéria, é importante apontar que há
uma diferença entre o tempo do intelectual e o do policy-maker que
exerce as responsabilidades do poder. O do intelectual é o tempo mais amplo da
reflexão e da investigação. O de quem exerce o poder é o tempo da urgência do
processo decisório.
Analisando esses dois distintos tempos,
Kissinger, nas suas Memórias, observou que um período de altas responsabilidades
governamentais ensina a decidir, não ensina o que decidir. Quem
decide leva em conta no processo decisório suas experiências e conhecimentos.
É o que esclarecem os quatro volumes
dos Diários da Presidência de FHC. Estes documentam na sua gestão –
além do peso dos fatos e das dificuldades – a onipresença do rumo e da
mobilização do saber técnico. Foi a partir disso que construiu a sua liderança,
a sua competência no conduzir, elaborando à luz das circunstâncias a visão de
futuro de um rumo esclarecedor das prioridades.
Joaquim Nabuco, em Balmaceda, refletiu
sobre os critérios apropriados para julgar o valor de uma Presidência e indicou
que o critério se encontra no resultado de sua administração. E aí, diz Nabuco,
é preciso comparar o estado em que um presidente recebeu o país e o estado em
que o deixou.
O saldo do inventário dos dois mandatos de
FHC é altamente positivo. É fruto do bem-sucedido exercício de sua liderança
inovadora, que captou o novo, não sucumbiu à inércia das rotinas, ampliou a
qualidade da governança e criou, na plena vigência de um Estado Democrático de
Direito, melhores condições de vida para o País e seu povo. Elevou o patamar do
Brasil e de sua presença no mundo.
Na pós-Presidência, FHC reinventou-se no
exercício de um outro tipo de liderança, a de um institution-builder.
Criou a Fundação FHC, pensando nas tarefas do intelectual na política em nosso
país. Guiou-se pela “ideia a realizar” de um think tank apartidário e
pluralista, respeitador do debate qualificado das ideias, permeado pela adesão
à democracia. Valeu-se, nesta tarefa, do seu poder de convocatória e da sua
experiência na mobilização de pessoas capacitadas para articular rumos e
propiciar saberes técnicos.
O capital simbólico da Fundação FHC é o
legado do denso inventário do conjunto de suas realizações e atividades
como think tank que obteve, sob sua liderança de institution
builder, reconhecimento nacional e internacional.
Este se fundamenta nas dezenas e
dezenas de debates e na sua irradiação, amplificados pelos recursos da era
digital. Os macrotemas dos últimos cinco anos, dos cerca de 50 seminários
anuais, analisaram: a democracia e seus desafios, os problemas econômicos e das
relações internacionais, os do meio ambiente e da mudança climática, os imperativos
do desenvolvimento social.
Em síntese, o que nos cabe fazer na
fundação é levar adiante, sob a inspiração da trajetória de FHC e do seu
conselho, uma aprofundada continuidade do que vem sendo trabalhado no correr
dos anos. É seguir, com a superior condução de seu diretor executivo, Sergio
Fausto, propiciando seminários e pesquisas que enfrentam, no qualificado debate
das ideias, a agenda da atualidade do Brasil e do mundo.
*Presidente do conselho da FFHC, professor emérito da Faculdade de Direito da USP, foi ministro de Relações Exteriores (1992; 2001-2002)
Fora,Bozo.
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