Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Para alguns, serão a confirmação da ilusão
autoritária do voto de 2018; para outros, estas são as escolhas de
representantes do povo cidadão
As várias anomalias da situação com que se
defrontam o eleitorado e os candidatos nestas eleições sugerem que para muitos
não serão elas apenas eleições. Para alguns, serão a confirmação da ilusão
autoritária do voto de 2018, quando a população votou enganada pelas “fake
news”. Bolsonaro elegeu-se no ingênuo pressuposto de que o eleitorado que o
elegeu abdicara de seu direito cidadão de ser representado.
Teria delegado sua cidadania ao eleito, à
sua dinastia e aos seus cúmplices para fragilizar e até suprimir direitos
sociais, facilitar as vantagens privadas do arbítrio e usurpar a competência
participativa dos cidadãos em ações e protestos. Até Rasputin teve abrigo nos
recintos do poder.
O governante agiu, nestes quase quatro
anos, como se tivesse sido eleito para um mandato de feição totalitária oculto
numa democracia falsa e teatral. Esperneou o tempo todo porque entendeu que, no
enquadramento da lei, as instituições lhe usurpavam o poder imaginário de comandante
de quartel.
Para outros, estas são eleições de representantes do povo cidadão na esfera federal e na estadual, nos Executivos e nos Legislativos.
Serão, mesmo, um outro referendo para
confirmar e legitimar a Constituição de 1988, os direitos sociais e políticos
nela consagrados e o republicanismo correspondente. Definir se o brasileiro é
apenas meio cidadão, subjugado pela tirania da imposição das crenças de alguns
como crença de todos e pelo dever de bater continência o resto da vida. Ou se o
governo é governo do povo pelo povo e para o povo ou latifúndio de um cacho de
parentes sem mandato.
Nestas eleições, votaremos diversas
questões. Uma, a legitimação da concepção democrática própria dos regimes
políticos da ordem com progresso, do direito à diferença e à laicidade, à
liberdade de expressão com responsabilidade e à liberdade de criação. Ou se
estamos renunciando ao nosso compromisso com a liberdade em favor de um regime
de senzala dominado por um tosco e prepotente feitor, dotado apenas de um
descabido e impróprio afã de poder. O poder de usurpar direitos sociais e
políticos, de sobrepor-se à lei, de aliciar bajuladores, de armar os cúmplices,
de intimidar os cidadãos e pô-los de joelhos.
Provavelmente, mais do que nunca na
história republicana do país, o Brasil se vê cara a cara com as grandes
pendências, deformações e enganos de rumo de sua história. A história
brasileira, neste momento decisivo do destino de todos, defronta-se com o alto
e perigoso preço político de deixar para depois, ou tratar como irrelevante, o
não resolvido, a falta de um projeto de nação, a consciência social e política
mutilada e falsa da obra incompleta. Somos macunaímicos porque sem caráter,
isto é, sem identidade, colagem de vários Brasis desencontrados.
Tardamos na inquietação com as
consequências das infiltrações do autoritarismo remanescente nas brechas das
instituições e na fragilidade da ordem política da conciliação sem prudência. A
ditadura de Deodoro e Floriano não foi vencida pela eleição direta de Prudente
de Morais, a de Getúlio não foi vencida pela eleição de Dutra, a incerteza do
golpe inconcluso de 1954 a 1956 não foi vencida pela eleição de JK, a da
ditadura militar de 1964 a 1985 não foi vencida pela ascensão constitucional de
José Sarney.
O atual governante infiltrou-se na
democracia para destruí-la. Nos artifícios antidemocráticos da campanha eleitoral
de 2018, como os das “fake news” e os delírios anticomunistas, organizou um
governo desgovernado, baseado na disseminação da insegurança, do medo e da
incerteza. Reuniu o resíduo acumulado de todas as omissões políticas da
história republicana para formar o ideário de uma nova ditadura e subjugar o
Brasil às conveniências de uma guerra fria já extinta.
Seu programa tem sido o da reunião a dedo
do que é, propriamente, resto antagônico do nosso ideário democrático a duras
penas gestado nos intervalos de grandeza da nação brasileira.
No governo atual tudo de significativo e
social, cultural e politicamente criativo, que o povo brasileiro foi capaz de
imaginar e universalizar nos seus momentos democráticos, teve seu significado e
seu objetivo virados do avesso para definir um modelo político de nulidades que
reduzisse a sociedade e o povo a um ajuntamento carneiril, minimizado por uma
mentalidade castrense, distante da atualidade da cultura, da política e da
civilização.
Não será estranho que o esperado retorno à
democracia e à normalidade constitucional que decorra das eleições de 2022
coloque o novo governo diante da grande tarefa de desconstruir a estrutura
política anômala, intolerante e autoritária infiltrada no Estado em 1º de
janeiro de 2019.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "As duas mortes de Francisca Júlia A Semana de Arte Moderna antes da semana" (Editora Unesp, 2022).
"Não será estranho que o esperado retorno à democracia e à normalidade constitucional que decorra das eleições de 2022 coloque o novo governo diante da grande tarefa de desconstruir a estrutura política anômala, intolerante e autoritária infiltrada no Estado em 1º de janeiro de 2019"
ResponderExcluirSerá nada estranho. Mas recuperar a máquina pública será fácil. Inclusive os milicos, aos quais serão ensinados direito constitucional.
Preocupa-me a direita q resumo da seguinte forma:
Eu achava q vivia num país pacífico e bonito por natureza. Não sabia q tinha tanto babaca no Brasil como o veinho q lambe cano, como o veio da havan, da riachuelo, da smartfit, o bozo, o moro, as mulheres q os apoiam, homofóbicos, misóginos, racistas, xenófobos,... enfim, os broxonarentos.
ANÔMALOS, INTOLERANTES E AUTORITÁRIOS.
No fundo, GENTE RUIM.
Muito bom o artigo.
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