sábado, 3 de setembro de 2022

Maria Cristina Fernandes - No bicentenário das urnas, paz foi exceção

Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Livro mostra que, 173 anos antes da peleja do presidente do TSE, Alexandre de Moraes, já se tentava desarmar os eleitores

“Grupos armados, capitaneados por agentes policiais disfarçados, que expeliam as mesas legalmente organizadas, quebravam urnas, rasgavam cédulas e espancavam votantes.” Corria o ano de 1840, o último ano da Regência, período durante o qual, desde a Independência, a nação mais esteve ameaçada. O autor do relato é João Manuel Pereira da Silva, um filho de comerciantes de Nova Iguaçu (RJ) que estudara direito em Paris e acumularia 11 mandatos como deputado.

Nos resgates de seu livro de memórias, Pereira da Silva mostrou que, se as rebeliões foram a face mais visível dessa ameaça, as eleições do período demonstraram como a disputa pelo voto foi a tradução institucional dessa guerra. Não é por outra razão que, 200 anos depois, o governo que mais atacou os alicerces da nação brasileira tenha escolhido as urnas eletrônicas por alvo.

O nome dado à disputa de 1840, que acabaria cancelada pelo imperador, é autoexplicativo, “eleições do cacete”. E foram assim definidas por Pereira da Silva: “Empregados públicos são colocados na dura colisão de optar entre o sacrifício de sua consciência e o pão de seus filhos; operários de repartições públicas, soldados, marinheiros de embarcações de guerra, são constrangidos a levar à carga cerrada, em listas que lhe são impostas, um voto de que não têm consciência”.

Pereira da Silva é recuperado em “Eles e o voto” (Távola Editorial, 2022), do ex-professor da UNB e ex-ministro do TSE Walter Costa Porto. O livro poderia ter suas 627 páginas reduzidas pela metade com o expurgo das repetições, mas vale pelo resgate dos personagens da política nacional mais enfronhados nas tentativas de fazer do voto o filtro mais fidedigno das escolhas nacionais.

O primeiro deles é Honório Hermeto Carneiro Leão, o marquês de Paraná, contemporâneo de quem Pereira da Silva diria ser “o homem público que maior influência havia exercido no cenário político desde o ano de 1831”. Nascido em Jacuí (MG), graduado em direito em Coimbra, foi juiz antes de conquistar seu primeiro mandato de deputado em 1830. Não tinha domínio da tribuna, mas era, na definição de Joaquim Nabuco, “dotado de raro tino político, de uma disposição prática e positiva que o fazia observar friamente os homens, a acumular as pequenas observações de cada dia, de preferência a procurar ideias gerais, princípios sintéticos de política”.

Das observações acumuladas sobressaíram-se as fraudes e, dos princípios sintéticos, saiu o sistema eleitoral, sintetizado na “Lei dos Círculos”. Em sua experiência como presidente da província de Pernambuco, no ano seguinte à Revolta Praieira (1848), percebera como a repressão às rebeliões do império excluía votantes ao bel-prazer dos governantes de plantão.

Numa circular aos agentes policiais, 173 anos antes da peleja do presidente do TSE, Alexandre de Moraes, para proibir o porte de armas para a categoria de Caçadores, Atiradores e Colecionadores (CACs), Paraná ordenou que se desarmassem aqueles que comparecessem para votar. E também que se pusessem em liberdade aqueles que haviam sido recrutados como votantes. Foi uma medida precursora da proibição, consignada no código eleitoral de 1965, da prisão nos cinco dias que antecedem a disputa e nas 48 horas que a sucedem.

De volta à política nacional, como presidente do Conselho de Ministros, o marquês de Paraná seria o principal formulador da implantação dos distritos eleitorais. A circunscrição deixaria de ser toda a província e a disputa eleitoral se daria em “círculos”.

A ideia era aproximar o eleitor de seu representante para equilibrar o mandonismo provincial, mas o sistema acabaria sendo visto como um veneno para a sobrevivência das minorias. Tampouco coibiu a corrupção. “Criou a política de aldeia, a dependência dos deputados dos interesses locais”, diz Costa Porto.

Os círculos de Paraná regeram as disputas eleitorais no país por 77 anos, devidamente ignorados pelos que hoje o advogam como panaceia. Foi seguido por outros reformistas sem que o modelo se tornasse mais inclusivo ou infenso a fraudes. Em 1880, o deputado baiano José Antonio Saraiva, que também presidiria o Conselho de Ministros, excluiu o voto dos analfabetos. A eleição de 1882 seria a primeira em que os analfabetos ficariam de fora. A exclusão duraria mais de 100 anos e acabaria com a Constituinte de 1988.

A alfabetização, na verdade, foi um critério de exclusão muito mais severo do que a exigência de renda. Saraiva manteve a exigência, mas sob um patamar tão reduzido que Raymundo Faoro avalia que apenas os “quase mendigos” estavam excluídos. Ele calcula que, em 1872, apenas 10% da população era de votantes, visto que 18,7% eram escravos, 27% eram menores de 25 anos e 30%, eram mulheres. Dos 25% restantes, excluam-se ainda os que não podiam se alistar como eleitores, como os criados, e tem-se aí um a cada dez brasileiros como eleitores.

O voto censitário e a exclusão das mulheres só cairia em 1932, com a adoção do código eleitoral. Outros reformistas, como José de Alencar, os ignoraram, apesar da dedicação à causa do voto no Brasil. Sua conterrânea e também escritora Raquel de Queiroz alerta aos incautos sobre a inclusão de seu nome entre os estadistas do voto: “A política é que era seu país, a sua nação de nascimento. Da política é que ele teve que fugir e desgarrar-se, para poder-se entregar à literatura”.

O vezo reformista de José de Alencar se voltou contra o modelo majoritário. Sua militância pelo voto proporcional o levaria, décadas mais tarde, a ser definido por Wanderley Guilherme dos Santos, patrono da moderna ciência política, como “um dos mais sofisticados teóricos da democracia, escrevendo no século XIX”.

Ao longo do império, só Machado de Assis, único dos perfilados do livro a não exercer mandato, denunciaria a exclusão das mulheres das eleições. “Venha, venha o voto feminino; eu o desejo, não somente porque é ideia de publicitas notáveis, mas porque é um elemento estético nas eleições onde não há estética”.

Sexista? Com certeza, mas 100 anos atrás parecia mais aceitável do que no lançamento da chapa Simone Tebet e Mara Gabrilli, quando o senador Tasso Jereissati disse que “só o amor e a docilidade da mulher podem unir o país”, o presidente do Cidadania, Roberto Freire, disse que uma chapa de duas mulheres vai propor que o Brasil “volte a ter amor” e o senador José Serra afirmou ter prestado atenção como a dupla “havia se produzido”.

Numa eleição, como a de 2022, tão marcada pela religião, Machado de Assis cai como um visionário. Saraiva havia proibido a realização de eleições nas igrejas, salvo na inexistência de outro prédio público, mas foi Machado quem denunciou o conluio entre fé e voto: “Que as procissões saiam às ruas não há inconveniência palpável; mas que os comícios sejam convocados para a igreja, eis o que é arriscado, e em todo o caso ocioso. Na igreja reza-se, prega-se, medita-se, conversa a alma com seu criador; as paixões devem ficar à porta, com todo o seu cortejo de causas e fins, e os interesses também, por mais legítimos que sejam”.

Se Machado nunca se aventurou na caça a votos, Joaquim Nabuco, outro denunciante das mazelas eleitorais do Império, o fez com sofreguidão. Sua militância abolicionista causou-lhe agruras nas urnas. Na segunda vez em que tentou se eleger deputado, o “Diário de Pernambuco”, na seção “Publicações a pedido”, registrou: “Não poderia ser reconhecido como deputado um anarquista do quilate do sr. Nabuco, depois de uma campanha eleitoral como esta em que, depois de expender as mais perniciosas doutrinas, tais como o aniquilamento da propriedade escrava e territorial e o conselho aos comerciantes para passarem esponjas nos débitos dos agricultores e abrirem contas, foi repelido das urnas pela mais patente derrota que dar se pode”.

A contestação não ficou restrita às páginas de jornais. Sua filha, Carolina Nabuco, resgataria os relatos dessa eleição: “À porta da Matriz de S. José, onde se havia contado como certo o triunfo de Nabuco, estava afixado o resultado da eleição, Portela, 94, Nabuco, 76 (...) quando se ouvia chegar a onda popular, lançando vivas a Nabuco. Não havia polícia. O primeiro movimento dos mesários foi trancar as portas contra aqueles que vinham em número tão superior que nada se poderia fazer para garantir as urnas (...), Os assaltantes, a princípio desprevenidos, subiram afinal armados de facas, cacetes e até paralelepípedos. O fiscal, major Esteves, vulgo Bodé, que com seu irmão e um sobrinho continuava a defender o recinto, foi mortalmente ferido e o sobrinho, morto instantaneamente. Os livros e papeis foram destruídos”.

A investida mais concreta contra esse estado de coisas só viria mesmo com o código eleitoral de 1932, por iniciativa de Getúlio Vargas. Sua ascensão ao poder, dois anos antes, se deu depois uma carreira política calcada nas infrações eleitorais que sobreviveram à mudança do Império para a República.

Com o código, formulado pelo deputado Assis Brasil, também gaúcho, não apenas as mulheres ascenderiam à condição de eleitoras, como as mesas eleitorais seriam entregues a magistrados capazes de assegurar o voto secreto e inviolável. Vargas estendia para o voto o conjunto de mudanças que, conjuntamente com a nova legislação trabalhista, alcançaria o eleitorado urbano e daria sustentação política à sua longevidade no poder.

O código também começaria a pôr fim ao sistema distrital e instituiria o voto proporcional para a Câmara dos Deputados, a ser consolidado com a Constituição de 1934. Mas a mudança não era a panaceia. Em discurso de 1935, resgatado por Walter Costa Porto, o deputado Dorval Melchiades queixava-se: “....agora, nove meses depois das eleições de 14 de outubro, ainda não são conhecidos os resultados das eleições no Rio de Janeiro”. Demoraria 87 anos para o plenário do Tribunal Superior Eleitoral aplaudir de pé a constatação de que o país havia se transformado na única democracia do mundo a apurar e divulgar os resultados eleitorais no mesmo dia

 

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