Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Livro mostra que, 173 anos antes da peleja
do presidente do TSE, Alexandre de Moraes, já se tentava desarmar os eleitores
“Grupos armados, capitaneados por agentes
policiais disfarçados, que expeliam as mesas legalmente organizadas, quebravam
urnas, rasgavam cédulas e espancavam votantes.” Corria o ano de 1840, o último
ano da Regência, período durante o qual, desde a Independência, a nação mais
esteve ameaçada. O autor do relato é João Manuel Pereira da Silva, um filho de
comerciantes de Nova Iguaçu (RJ) que estudara direito em Paris e acumularia 11
mandatos como deputado.
Nos resgates de seu livro de memórias,
Pereira da Silva mostrou que, se as rebeliões foram a face mais visível dessa
ameaça, as eleições do período demonstraram como a disputa pelo voto foi a
tradução institucional dessa guerra. Não é por outra razão que, 200 anos
depois, o governo que mais atacou os alicerces da nação brasileira tenha
escolhido as urnas eletrônicas por alvo.
O nome dado à disputa de 1840, que acabaria
cancelada pelo imperador, é autoexplicativo, “eleições do cacete”. E foram
assim definidas por Pereira da Silva: “Empregados públicos são colocados na
dura colisão de optar entre o sacrifício de sua consciência e o pão de seus filhos;
operários de repartições públicas, soldados, marinheiros de embarcações de
guerra, são constrangidos a levar à carga cerrada, em listas que lhe são
impostas, um voto de que não têm consciência”.
Pereira da Silva é recuperado em “Eles e o voto” (Távola Editorial, 2022), do ex-professor da UNB e ex-ministro do TSE Walter Costa Porto. O livro poderia ter suas 627 páginas reduzidas pela metade com o expurgo das repetições, mas vale pelo resgate dos personagens da política nacional mais enfronhados nas tentativas de fazer do voto o filtro mais fidedigno das escolhas nacionais.
O primeiro deles é Honório Hermeto Carneiro
Leão, o marquês de Paraná, contemporâneo de quem Pereira da Silva diria ser “o
homem público que maior influência havia exercido no cenário político desde o
ano de 1831”. Nascido em Jacuí (MG), graduado em direito em Coimbra, foi juiz
antes de conquistar seu primeiro mandato de deputado em 1830. Não tinha domínio
da tribuna, mas era, na definição de Joaquim Nabuco, “dotado de raro tino
político, de uma disposição prática e positiva que o fazia observar friamente
os homens, a acumular as pequenas observações de cada dia, de preferência a
procurar ideias gerais, princípios sintéticos de política”.
Das observações acumuladas sobressaíram-se
as fraudes e, dos princípios sintéticos, saiu o sistema eleitoral, sintetizado
na “Lei dos Círculos”. Em sua experiência como presidente da província de
Pernambuco, no ano seguinte à Revolta Praieira (1848), percebera como a
repressão às rebeliões do império excluía votantes ao bel-prazer dos
governantes de plantão.
Numa circular aos agentes policiais, 173
anos antes da peleja do presidente do TSE, Alexandre de Moraes, para proibir o
porte de armas para a categoria de Caçadores, Atiradores e Colecionadores
(CACs), Paraná ordenou que se desarmassem aqueles que comparecessem para votar.
E também que se pusessem em liberdade aqueles que haviam sido recrutados como
votantes. Foi uma medida precursora da proibição, consignada no código
eleitoral de 1965, da prisão nos cinco dias que antecedem a disputa e nas 48
horas que a sucedem.
De volta à política nacional, como
presidente do Conselho de Ministros, o marquês de Paraná seria o principal
formulador da implantação dos distritos eleitorais. A circunscrição deixaria de
ser toda a província e a disputa eleitoral se daria em “círculos”.
A ideia era aproximar o eleitor de seu
representante para equilibrar o mandonismo provincial, mas o sistema acabaria
sendo visto como um veneno para a sobrevivência das minorias. Tampouco coibiu a
corrupção. “Criou a política de aldeia, a dependência dos deputados dos
interesses locais”, diz Costa Porto.
Os círculos de Paraná regeram as disputas
eleitorais no país por 77 anos, devidamente ignorados pelos que hoje o advogam
como panaceia. Foi seguido por outros reformistas sem que o modelo se tornasse
mais inclusivo ou infenso a fraudes. Em 1880, o deputado baiano José Antonio
Saraiva, que também presidiria o Conselho de Ministros, excluiu o voto dos
analfabetos. A eleição de 1882 seria a primeira em que os analfabetos ficariam
de fora. A exclusão duraria mais de 100 anos e acabaria com a Constituinte de
1988.
A alfabetização, na verdade, foi um
critério de exclusão muito mais severo do que a exigência de renda. Saraiva
manteve a exigência, mas sob um patamar tão reduzido que Raymundo Faoro avalia
que apenas os “quase mendigos” estavam excluídos. Ele calcula que, em 1872,
apenas 10% da população era de votantes, visto que 18,7% eram escravos, 27%
eram menores de 25 anos e 30%, eram mulheres. Dos 25% restantes, excluam-se
ainda os que não podiam se alistar como eleitores, como os criados, e tem-se aí
um a cada dez brasileiros como eleitores.
O voto censitário e a exclusão das mulheres
só cairia em 1932, com a adoção do código eleitoral. Outros reformistas, como
José de Alencar, os ignoraram, apesar da dedicação à causa do voto no Brasil.
Sua conterrânea e também escritora Raquel de Queiroz alerta aos incautos sobre
a inclusão de seu nome entre os estadistas do voto: “A política é que era seu
país, a sua nação de nascimento. Da política é que ele teve que fugir e
desgarrar-se, para poder-se entregar à literatura”.
O vezo reformista de José de Alencar se
voltou contra o modelo majoritário. Sua militância pelo voto proporcional o
levaria, décadas mais tarde, a ser definido por Wanderley Guilherme dos Santos,
patrono da moderna ciência política, como “um dos mais sofisticados teóricos da
democracia, escrevendo no século XIX”.
Ao longo do império, só Machado de Assis,
único dos perfilados do livro a não exercer mandato, denunciaria a exclusão das
mulheres das eleições. “Venha, venha o voto feminino; eu o desejo, não somente
porque é ideia de publicitas notáveis, mas porque é um elemento estético nas
eleições onde não há estética”.
Sexista? Com certeza, mas 100 anos atrás
parecia mais aceitável do que no lançamento da chapa Simone Tebet e Mara
Gabrilli, quando o senador Tasso Jereissati disse que “só o amor e a docilidade
da mulher podem unir o país”, o presidente do Cidadania, Roberto Freire, disse
que uma chapa de duas mulheres vai propor que o Brasil “volte a ter amor” e o
senador José Serra afirmou ter prestado atenção como a dupla “havia se
produzido”.
Numa eleição, como a de 2022, tão marcada
pela religião, Machado de Assis cai como um visionário. Saraiva havia proibido
a realização de eleições nas igrejas, salvo na inexistência de outro prédio
público, mas foi Machado quem denunciou o conluio entre fé e voto: “Que as
procissões saiam às ruas não há inconveniência palpável; mas que os comícios
sejam convocados para a igreja, eis o que é arriscado, e em todo o caso ocioso.
Na igreja reza-se, prega-se, medita-se, conversa a alma com seu criador; as
paixões devem ficar à porta, com todo o seu cortejo de causas e fins, e os
interesses também, por mais legítimos que sejam”.
Se Machado nunca se aventurou na caça a
votos, Joaquim Nabuco, outro denunciante das mazelas eleitorais do Império, o
fez com sofreguidão. Sua militância abolicionista causou-lhe agruras nas urnas.
Na segunda vez em que tentou se eleger deputado, o “Diário de Pernambuco”, na
seção “Publicações a pedido”, registrou: “Não poderia ser reconhecido como
deputado um anarquista do quilate do sr. Nabuco, depois de uma campanha
eleitoral como esta em que, depois de expender as mais perniciosas doutrinas,
tais como o aniquilamento da propriedade escrava e territorial e o conselho aos
comerciantes para passarem esponjas nos débitos dos agricultores e abrirem
contas, foi repelido das urnas pela mais patente derrota que dar se pode”.
A contestação não ficou restrita às páginas
de jornais. Sua filha, Carolina Nabuco, resgataria os relatos dessa eleição: “À
porta da Matriz de S. José, onde se havia contado como certo o triunfo de
Nabuco, estava afixado o resultado da eleição, Portela, 94, Nabuco, 76 (...)
quando se ouvia chegar a onda popular, lançando vivas a Nabuco. Não havia
polícia. O primeiro movimento dos mesários foi trancar as portas contra aqueles
que vinham em número tão superior que nada se poderia fazer para garantir as
urnas (...), Os assaltantes, a princípio desprevenidos, subiram afinal armados
de facas, cacetes e até paralelepípedos. O fiscal, major Esteves, vulgo Bodé,
que com seu irmão e um sobrinho continuava a defender o recinto, foi
mortalmente ferido e o sobrinho, morto instantaneamente. Os livros e papeis
foram destruídos”.
A investida mais concreta contra esse
estado de coisas só viria mesmo com o código eleitoral de 1932, por iniciativa
de Getúlio Vargas. Sua ascensão ao poder, dois anos antes, se deu depois uma
carreira política calcada nas infrações eleitorais que sobreviveram à mudança
do Império para a República.
Com o código, formulado pelo deputado Assis
Brasil, também gaúcho, não apenas as mulheres ascenderiam à condição de
eleitoras, como as mesas eleitorais seriam entregues a magistrados capazes de
assegurar o voto secreto e inviolável. Vargas estendia para o voto o conjunto
de mudanças que, conjuntamente com a nova legislação trabalhista, alcançaria o
eleitorado urbano e daria sustentação política à sua longevidade no poder.
O código também começaria a pôr fim ao sistema distrital e instituiria o voto proporcional para a Câmara dos Deputados, a ser consolidado com a Constituição de 1934. Mas a mudança não era a panaceia. Em discurso de 1935, resgatado por Walter Costa Porto, o deputado Dorval Melchiades queixava-se: “....agora, nove meses depois das eleições de 14 de outubro, ainda não são conhecidos os resultados das eleições no Rio de Janeiro”. Demoraria 87 anos para o plenário do Tribunal Superior Eleitoral aplaudir de pé a constatação de que o país havia se transformado na única democracia do mundo a apurar e divulgar os resultados eleitorais no mesmo dia
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