domingo, 4 de setembro de 2022

Muniz Sodré* - A nova ordem do dia

Folha de S. Paulo

A política de segurança na Colômbia e a democracia

São auspiciosos os ventos que sopram da Colômbia, onde o presidente recém-empossado acaba de trocar a velha cúpula militar por outra, qualificada como "violação zero dos direitos humanos e corrupção zero". O objetivo imediato é a "reconciliação das forças de segurança com a sociedade". A perspectiva global é a da circulação de gerações de oficiais num projeto de nova política de segurança.

Entre nós é difícil vislumbrar algo assim, quando ainda se mostra ambíguo o poder armado frente ao espírito anticonstitucional de núcleos extremistas emergentes. Na ausência de declarações factualmente confiáveis, vale a pena recorrer a uma alusão literária, especificamente ao romance "Farda, Fardão, Camisola de Dormir", de Jorge Amado.

Com o pretexto temático de uma eleição acadêmica, o escritor narra a disputa entre o "coronel Agnaldo Sampaio Pereira", representante do nazifascismo estado-novista, e o "general Waldomiro Moreira", de tendências liberais. Nada estranho à vida real que figuras similares aspirem ao fardão das letras. Há casos notórios.

A atualidade romanesca não está apenas na coincidência entre fatos da ditadura de Vargas e a atmosfera protofascista de agora, em que nomes de sórdidos torturadores brilham em discursos oficiais e em que trogloditas empresariais preconizam o fim da República. Atual é principalmente a sugestão implícita no livro e avivada pelos ventos colombianos de que a luta entre duas mentalidades seja o leitmotiv de uma reflexão coletiva sobre a premência de um "aggiornamento" das Forças Armadas.

Disso houve episódios ilustrativos. Até se modernizarem, por influência dos militares franceses (anos 20), essas forças eram a "necrogarantia" do ethos escravista. A Proclamação feita pelo alto foi o passo formal para a apropriação do Estado pelas oligarquias. Combinando a custódia militar com o patrimonialismo, a República já nasceu Velha. E ao longo da Nova nada afetou o DNA intervencionista da organização armada.

Mas sempre houve, como sugere o romance, estados mentais diversos. A diferença, se ativada pelo fortalecimento da sociedade civil, talvez possa mobilizar a compreensão de que o golpismo como solo ideológico do combate a inimigos hoje imaginários (comunismo, bolivarianismo etc.) é o álibi da preservação do status-quo histórico, é a doença crônica, mas não autoimune, do militarismo. Sem uma "cura", isto é, sem modernização de mentalidades, o futuro institucional das Forças arrisca-se ao vexame de uma indistinção entre farda e camisola de dormir.

Daí a urgência estratégica de ter na mente que o verdadeiro inimigo dos recalcitrantes, o seu eterno fantasma, é a própria República democrática.

*Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de "A Sociedade Incivil" e "Pensar Nagô".

 

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