segunda-feira, 5 de setembro de 2022

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

Editoriais / Opiniões

Governo transforma o ensino superior em terra arrasada

O Globo

Matrículas caíram de 1,3 milhão para 1,2 milhão, segundo Censo — só em 2020, 270 mil alunos trancaram o curso

O último Censo da Educação Superior identificou queda no número de alunos matriculados nas universidades, de 1,3 milhão em 2019 para 1,2 milhão em 2020. Contribuiu para isso o trancamento de 270 mil matrículas. O enfrentamento da evasão nas universidades, num país que carece de profissionais qualificados, tem relação evidente com o corte nas bolsas de auxílio aos alunos carentes, não apenas dos cotistas, forçado pelo garrote orçamentário que o governo Jair Bolsonaro impôs às universidades federais. O tema foi abordado com destaque no VIII Fórum Nacional de Reitores e Dirigentes das Universidades Parceiras do Futura, canal ligado ao Grupo Globo que faz 25 anos.

Em 2020, no Censo universitário realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), do MEC, completou-se outra “década perdida” no ensino superior. A taxa anual média de crescimento foi de irrisório 0,3%, segundo a Fundação Getúlio Vargas. Na pandemia, a situação ficou ainda pior, devido à corrosão dos orçamentos familiares e à aceleração da inflação. A evasão do ensino superior está expressa também na queda no número de alunos que se formam: segundo o Censo, os diplomados nas universidades cresceram até atingir quase 157 mil estudantes em 2018, quando passaram a cair, até chegar a 118 mil em 2020.

O trancamento de 270 mil matrículas em 2020, mais que o dobro de 2019, tem como principal motivo as dificuldades econômicas — entre o trabalho e a faculdade, o estudante é forçado a largar a faculdade e buscar sustento para si e para a família. Mas não foi só isso. Com o desembarque em Brasília do governo Bolsonaro, com sua ideologia negacionista e anti-Ciência, tudo o que está relacionado à cultura e à educação foi deixado de lado. A “guerra cultural” atingiu o orçamento das universidades federais, enquanto tornava o MEC um ministério inoperante.

No período de dez anos entre 2011 e 2020, apenas 40%, em média, dos alunos que se matricularam em alguma faculdade concluíram o curso. As universidades privadas apresentaram o maior índice de formaturas (60%), seguidas das federais (54%) e das estaduais (49%). Mas as privadas, com exceção das católicas e de algumas outras, ficaram aquém das públicas em termos de qualidade de ensino. Conclusão: formam-se menos profissionais, e boa parte daqueles que se formam não supre a qualidade da mão de obra necessária ao país.

Diante desse cenário de dificuldades, em que a verba das universidades federais destinada a alunos socialmente vulneráveis está 16% menor que em 2019, reitores precisariam destinar mais recursos para bolsas aos alunos cotistas e demais necessitados.

Não é o que tem acontecido, como mostra o exemplo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ela destinou R$ 54,3 milhões em 2019, primeiro ano do governo Bolsonaro, para 19 tipos de auxílios aos alunos (alimentação, compra de material didático, entre outros fins). Neste ano, em virtude dos cortes feitos pelo governo, serão apenas R$ 48,2 milhões, 11,2% de queda em relação a 2019. Para evitar a evasão, deveria ocorrer o contrário. Além de desidratar o MEC, o bolsonarismo também esvazia as faculdades públicas, promovendo uma política de terra arrasada no ensino superior.

Tortura de jovens acusados de furto na Bahia precisa ser punida com rigor

O Globo

Barbárie exibida em vídeo divulgado na internet não pode ter espaço num Estado democrático

São estarrecedoras, repugnantes e inadmissíveis as cenas de dois jovens negros, funcionários de uma loja em Salvador, na Bahia, torturados por empresários que os acusam de furto. As imagens, divulgadas na internet, mostram um dos rapazes sendo submetido a uma sessão de pauladas nas mãos. O outro é obrigado a exibir o número 171 (referência ao artigo do Código Penal que define o crime de estelionato), marcado nas mãos com um ferro de passar. Um dos jovens foi acusado de furtar R$ 30, e o outro de levar uma mercadoria do estabelecimento.

O caso, sob investigação da Polícia Civil da Bahia e do Ministério Público do Trabalho (MPT), veio à tona depois que o vídeo viralizou na internet. As vítimas contaram à polícia que a sessão de tortura e a gravação das imagens foram feitas pelo dono da loja e por um parente dele. Os jovens negam que tenham cometido furto e alegam que os patrões não respeitavam direitos trabalhistas. Dizem que trabalhavam sem carteira assinada, jornada fixa ou hora de descanso. Contaram ainda que sofriam desconto no salário a qualquer suspeita de furto.

De acordo com a polícia, um dos empresários ouvidos no inquérito disse que queria fazer “justiça com as próprias mãos” por ter ficado “chateado” com o furto na loja. As cenas exibidas no vídeo, ainda sob perícia na investigação, são escabrosas. Numa delas, um dos jovens aparece seminu, com um pano na boca para abafar os gritos durante a sessão de tortura. “Ele queimou minhas mãos, me deu várias pauladas, vários murros e falou que eu ia passar [o que acontecia] no tempo da escravidão”, contou um dos rapazes à TV Bahia.

Tão impressionante quanto a tortura é ela ter sido divulgada na internet sem o menor pudor, como se fosse um modelo a seguir. “Ó, pessoal, mais um ladrão aqui”, diz o narrador. É um descalabro. Não existe “justiça pelas próprias mãos”, como não há atalhos para a lei. Se alguém é acusado de furto, ou seja lá do que for, deve-se levar o caso à polícia para que o suspeito seja investigado e, comprovada a prática de crime, possa ser punido, sempre na forma da lei.

Infelizmente não são raros os absurdos no país do vale-tudo. Em abril do ano passado, Bruno Barros, de 29 anos, e o sobrinho Yan, de 19, foram acusados de furtar carne num supermercado de Salvador. Em vez de ser levados à polícia, foram entregues a traficantes por seguranças do estabelecimento. Dias depois, apareceram mortos com sinais de tortura. Na última ligação para uma amiga, Bruno fez um pedido desesperado: “Chama a polícia”.

O caso dos dois jovens torturados em Salvador precisa ser investigado com rigor. Se confirmadas as acusações, os responsáveis precisam ser punidos exemplarmente. Tortura é crime inafiançável. Para o bem da sociedade, é fundamental que situações como essa não se perpetuem, especialmente quando percorrem as vias obscuras da internet, disseminando a barbárie. “Tribunal do tráfico”, “justiça pelas próprias mãos” e outras aberrações do tipo não podem prosperar num Estado democrático.

Orçamento fictício

Folha de S. Paulo

Após gastança eleitoreira, governo faz previsão irrealista de receita e despesa

A melhora do resultado fiscal do governo federal, com saldo de R$ 115,6 bilhões (ou 1,38% do Produto Interno Bruto) nos 12 meses encerrados em julho, não autoriza uma atitude de relaxamento.

Ao contrário, o prognóstico é de sensível deterioração em 2023, como fica claro no projeto de lei orçamentária anual recém-enviado pelo Executivo ao Congresso.

A peça, frágil, apresenta cenários irrealistas e serve para demonstrar o aviltamento continuado, no governo Jair Bolsonaro (PL), das regras e procedimentos que deveriam balizar a gestão das finanças públicas. O rombo esperado é de R$ 63,7 bilhões, sem considerar as despesas com juros —hoje mais elevados— da dívida pública.

O projeto começa mal ao prever para o próximo ano crescimento do PIB de 2,5%, muito acima das expectativas mais comuns entre analistas de mercado. Ficam assim excessivamente otimistas também as estimativas de receitas tributárias, uma prática sempre temerária.

É fato que a arrecadação tem surpreendido positivamente desde 2021, mas tal fenômeno decorre em grande medida da escalada da inflação, que, espera-se, deve perder força daqui em diante.

Superestimar receitas ajuda o governo a viabilizar, no papel, a continuidade da renúncia de impostos federais sobre combustíveis, abrindo mão de R$ 52,9 bilhões que farão falta diante de tantas demandas por mais gastos.

No total, a conta dos subsídios tributários voltará ao patamar exagerado de 4% do PIB, o dobro do que prometia o governo na agenda de reequilíbrio das contas.

Elimina-se, assim, o tênue progresso obtido desde 2016 em cortar essa rubrica, na contramão da diretriz inscrita na Constituição.

Do lado das despesas, o projeto usou como base o valor de R$ 405 mensais para o Auxílio Brasil, ao custo de R$ 105 bilhões em 2023, mesmo diante da quase certeza de que politicamente será obrigatório manter os atuais R$ 600.

Com a correção, serão necessários mais R$ 52 bilhões, montante que não cabe no teto de gastos, fixado em R$ 1,8 trilhão, o que deve levar a mais uma alteração casuística na Constituição.

Não se vê nenhum esforço em fazer com que o necessário programa social caiba nos limites da despesa, como se observa pela destinação de R$ 38,8 bilhões para emendas parlamentares ao Orçamento —dos quais R$ 19,4 bilhões para as opacas emendas de relator.

Foram reservados ainda R$ 14,5 bilhões para reajustes de salários do funcionalismo, sendo R$ 11,6 bilhões para um aumento linear de 4,85% no Executivo, num sinal de que o congelamento dos últimos anos será insustentável.

Como seria de esperar, o descalabro eleitoreiro promovido neste ano por Bolsonaro deixará sequelas que vão emparedar a próxima administração desde seu primeiro dia. Será necessário grande esforço para restabelecer a ordem fiscal.

Os órgãos de controle, aliás, não podem se omitir diante do crescimento contínuo de despesas sem disciplina nem transparência.

A arma apontada

Folha de S. Paulo

Atentado contra Cristina Kirchner exige apuração rigorosa, isolada da política

O pouco que se sabe acerca do atentado contra a vice-presidente da Argentina, Cristina Kirchner, é mais que o bastante para repúdio e temor. O risco de que polarizações políticas descambem para a violência, lá como aqui, estava evidente mesmo antes do episódio.

Vídeos mostram com clareza chocante a pistola que se aproxima do rosto de Cristina, rodeada por uma multidão de apoiadores. A vice-presente se abaixa, aparentemente sem notar a ameaça. A arma não foi disparada, por motivos ainda não esclarecidos.

A polícia local prendeu o brasileiro Fernando Andrés Sabag Montiel, 35, identificado como o homicida em potencial. Informações preliminares dão conta de que ele vive no país vizinho desde 1993, trabalha como motorista de aplicativo e já teve problemas anteriores com as autoridades. Munições foram encontradas em sua casa.

Ademais, seria titular de conta em rede social que acompanha discursos radicais e teria tatuagens associadas ao nazismo. A sua versão para os acontecimentos é desconhecida até o momento.

Qualquer governo faria alarde em torno do caso, por bons motivos. Tratando-se da administração do presidente Alberto Fernández, que enfrenta severa crise política e econômica a um ano das eleições, a reação inflamada chegou a atropelar a prudência necessária.

Fernández decretou feriado para que a população prestasse solidariedade à vice e ex-presidente, que é alvo de processos na Justiça e se diz vítima de perseguição.

Fez ainda pronunciamento à nação, no qual se apressou a atribuir o ocorrido ao "discurso de ódio que está dividindo os argentinos". Desnecessário dizer que tal postura em nada contribui para uma apuração rigorosa e precisa dos fatos.

Também é recomendável cautela nos paralelos entre o episódio argentino e o infame ataque à faca a Jair Bolsonaro em 2018. Este já foi objeto de investigação, na qual se concluiu que o agressor sofria de transtornos mentais e agiu de moto próprio —o restante são teses conspiratórias e desinformação espalhadas à direita e à esquerda.

 O incrível país que vai bem e vai mal

O Estado de S. Paulo

Ao cogitar a renovação do inventado estado de calamidade para manter o Auxílio Brasil em R$ 600 em 2023, Guedes e Bolsonaro têm de decidir se o País está em crise ou ‘bombando’

No dia seguinte à apresentação de um Orçamento que explicitou a incapacidade de fazer valer sua principal promessa de campanha, o presidente Jair Bolsonaro disse que o Executivo poderá recorrer novamente a um estado excepcional para manter o piso do Auxílio Brasil em R$ 600 em 2023 sem ter de justificar o descumprimento de regras fiscais e orçamentárias. “Se a guerra continuar lá fora, continuamos em emergência aqui da mesma forma”, disse Bolsonaro. Pouco antes, o ministro da Economia, Paulo Guedes, já havia deixado claro que compactua com o uso dessa manobra. “Se a guerra da Ucrânia continua, prorroga o estado de calamidade, e aí você continua com R$ 600”, afirmou. Diante do fato de que essa solução fabricada voltou a ser estudada, o governo, até por uma questão de coerência, precisa decidir, afinal, se o Brasil está em crise ou está “bombando”, como Paulo Guedes costuma dizer.

Com razão, o desempenho da economia tem sido motivo de comemoração por parte do governo. Guedes disse que o crescimento – de 1,2% no segundo trimestre sobre os três meses anteriores – foi maior que o registrado por Estados Unidos, Europa e China. Aproveitou para mencionar a redução da inflação; celebrar a recuperação do comércio; exaltar o avanço dos investimentos; criticar bancos que reduziram as estimativas para o Produto Interno Bruto (PIB); destacar a queda do desemprego e o aumento da renda dos trabalhadores; e negar a existência de uma bomba fiscal no ano que vem. “Contra fatos não há argumentos. Que comece o ‘mas’”, desafiou.

Se a conjunção adversativa não cabe para descrever a situação do Brasil, como defende Guedes, então o País estaria “decolando”, razão pela qual não há motivo para que ele cogite – e frise-se, precisamente no mesmo dia e no mesmo evento em que se gabou do desempenho da economia brasileira – adotar um estado de calamidade a que só se recorre em momentos de profunda crise. Se há outros fundamentos que dão amparo a esse recurso, é dever do ministro revelá-los à sociedade. É imprescindível explicar por que é preciso romper novamente o teto de gastos e desmoralizar a pouca credibilidade de que o arcabouço fiscal ainda dispõe, a não ser que isso seja apenas um pretexto para solucionar urgências eleitorais relacionadas à candidatura de Bolsonaro.

O reconhecimento do estado de calamidade pública se deu no contexto da eclosão da covid-19, por meio de um decreto legislativo aprovado em março de 2020 e que produziu efeitos até 31 de dezembro daquele mesmo ano. A ele se seguiu a emenda constitucional que instituiu o orçamento de guerra e garantiu o pagamento do auxílio emergencial. Crente de que a pandemia, cujos efeitos sempre menosprezou, estava próxima do fim, o governo deixou milhões de famílias sem socorro nos três primeiros meses de 2021. Contrariado, acatou o retorno dos pagamentos em março e, com a aprovação que ele proporcionou ao presidente, criou o Auxílio Brasil em dezembro. Em julho, o Legislativo deu aval à elevação do piso a R$ 600, mas com uma importante diferença. Era preciso driblar, além do teto, as restrições legais que impediam o governo de alterar benefícios às vésperas das eleições. Foi apenas e tão somente por isso que o Executivo invocou o estado de emergência. Sem nenhum pudor, usou a guerra na Ucrânia para justificar a adoção de medidas pautadas pelo pleito de outubro e que apenas confirmaram uma reiterada displicência com a parcela mais carente da população.

Se o governo vê no desempenho do PIB a “consolidação da retomada da atividade econômica, mesmo com os impactos do conflito do Leste Europeu e os efeitos remanescentes da pandemia”, como descreveu o Ministério da Economia em nota oficial, não pode continuar a usar uma guerra de duração imprevisível para defender um recorrente descumprimento do arcabouço fiscal e orçamentário que rege o País. Para além da incompetência administrativa e da absoluta insensibilidade com as vítimas do confronto, essa é uma narrativa que subestima a inteligência da sociedade.

Descaso com a inovação

O Estado de S. Paulo

Ao limitar a liberação de recursos de fundo científico, Bolsonaro demonstra descompromisso com avanço tecnológico

 

Inovação, assim como ciência e tecnologia, é premissa para o desenvolvimento econômico. Não se trata de frase de efeito ou jogo de palavras. É fato. E vale para qualquer setor. No Brasil, infelizmente, o governo do presidente Jair Bolsonaro não se cansa de dar as costas para o mundo e ignorar a receita de sucesso que orienta a atividade econômica em países desenvolvidos, onde investimentos em inovação e tecnologia estão presentes nos planejamentos de curto, médio e longo prazos. 

A mais recente demonstração do despreparo do presidente − e de seu descompromisso em relação ao futuro do País − foi a edição da Medida Provisória (MP) 1.136/2022, que limita a aplicação de recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT). Com uma canetada, Bolsonaro não apenas atropelou o Congresso, que havia proibido o contingenciamento de recursos do fundo, como restringiu a liberação de parte significativa das verbas neste ano e nos quatro anos posteriores ao seu atual mandato.

É isso mesmo: se depender da medida provisória assinada pelo presidente, o FNDCT somente voltará a operar com 100% de sua capacidade em 2027. Não é preciso ser cientista nem empresário para imaginar o tamanho do prejuízo. Até porque, como se sabe, inovação não é algo que se faz do dia para a noite. A descontinuidade de financiamento, portanto, atingirá em cheio tanto o que já vinha sendo pesquisado quanto o que deixará de ser feito. Em resumo, uma receita para o atraso. 

Como mostrou o Estadão, entidades científicas e empresariais reagiram de imediato. A Confederação Nacional da Indústria (CNI) classificou a medida provisória como um retrocesso e listou algumas das centenas de pesquisas bancadas pelo fundo. Entre elas, o desenvolvimento de fertilizantes agrícolas e a realização de testes com vacinas brasileiras contra a covid-19. “Investir em inovação não é uma opção, é obrigação para os países desenvolverem suas economias e serem competitivos”, afirmou o presidente da CNI, Robson Braga de Andrade.

A CNI detalhou como se dará o bloqueio de recursos ano a ano: já em 2022, o FNDCT deixará de contar com R$ 3,5 bilhões em relação ao previsto. Daí em diante, a MP estabelece porcentuais máximos de aplicação das receitas do fundo: 58% em 2023; 68% em 2024; 78% em 2025; e 88% em 2026. Sem dúvida, números dignos de um programa contra a ciência, contra a tecnologia e contra a inovação. 

Eis o retrato do governo Bolsonaro: incapaz de definir um programa de desenvolvimento estratégico para o País, seu legado é o avesso de qualquer projeto. Não bastasse o reiterado endosso do presidente ao negacionismo científico, Bolsonaro tenta agora asfixiar um mecanismo essencial para o Brasil avançar em sua capacidade de inovação tecnológica. Diante de tamanho desatino, espera-se que o presidente do Senado, senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), tome a decisão mais sensata no momento: devolver a medida provisória ao Poder Executivo sem sequer examinar o seu teor.

Formulação racional de políticas públicas

O Estado de S. Paulo

Há pessoas e instituições produzindo evidências para qualificar o Estado. Mas campanhas baseadas em luta entre o ‘bem’ e o ‘mal’ turvam a escolha entre o que funciona ou não

Em 1999, um artigo publicado pelo governo do Reino Unido (Modernizando o Estado) notava que o governo deve “produzir políticas que realmente lidem com os problemas, que olhem para frente e sejam moldadas por evidências, em vez de uma resposta a pressões de curto prazo”, ou seja, políticas “que enfrentem as causas, não os sintomas”. Foi uma das primeiras articulações do conceito de “políticas públicas baseadas em evidências”: a ideia de que decisões políticas devem ser informadas por dados objetivos, em contraste com decisões baseadas em ideologias, “senso comum” e intuições.

É a tradução para a política da “medicina baseada em evidências”, em que decisões clínicas são apoiadas em indicadores de eficiência extraídos de pesquisas e testes randomizados controlados. Duas iniciativas recentes na área de segurança exemplificam como esse conceito pode ser aplicado na gestão pública.

Uma é o Indicador de eficiência de operações policiais, criado pelo Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos, da Universidade Federal Fluminense, com base em três parâmetros: o impacto aos envolvidos (número de mortos, feridos e presos); quantidade de ilícitos apreendidos (armas, drogas, contrabando); e as motivações das ações (se têm respaldo e autorização judicial). Tais critérios podem ser, por óbvio, questionados, mas são claros e verificáveis. A outra iniciativa é um convênio do Estado de São Paulo com a USP e a FGV para medir o impacto das câmeras corporais em PMs. O projeto durará cinco anos e envolve a criação de ferramentas de inteligência artificial que auxiliem na tomada de decisões na área de segurança.

São técnicas para diagnosticar problemas e implementar terapias. Mas a analogia entre a medicina e a política tem limites. Os críticos alertam para os riscos da “tecnocracia”, em que as decisões seriam tomadas por especialistas, em contraste com a democracia representativa, em que as decisões são tomadas pelos representantes eleitos. É uma falsa dicotomia. O exercício do poder democrático só é possível quando todos os cidadãos se sentem participantes e, para isso, devem ter as melhores informações técnicas disponíveis.

Os fins devem ser os resultados que os cidadãos querem. Os especialistas oferecem os meios comprovadamente eficazes. E os representantes eleitos, enquanto guardiões do interesse comum, os implementam de acordo com uma escala de prioridades, custos e benefícios.

As distorções ocorrem por húbris de uma das partes. Os populistas alegam que estão apenas implementando a vontade do povo e acusam qualquer oposição de antidemocrática. Os tecnocratas alegam que só se curvam às necessidades e toda oposição é irracional.

O debate eleitoral no Brasil ilustra particularmente os riscos do populismo. A polarização ideológica devora a lógica e a empiria. A essência de uma política saudável, o senso de que os cidadãos têm escolhas, que elas devem ser baseadas em evidências e que os políticos devem assumir a responsabilidade por suas decisões, é sufocada por um fatalismo que quebra a organicidade das políticas públicas.

Um bom sistema penal, por exemplo, resguarda a segurança da sociedade e compensa os ofendidos, com punições ao ofensor, e, ao mesmo tempo, garante os direitos do ofensor e promove a sua ressocialização. Nas mãos dos demagogos, esses fins são antagonizados, como se só houvesse uma escolha entre políticas preventivas ou repressivas, entre o “garantismo” ou o “punitivismo”. Os partidários de cada campo – lutando pelo “bem” – se dispensam de apresentar evidências que demonstrem a eficácia de suas políticas e obliteram ad limine as evidências apresentadas pelo outro – o “mal”.

Quebrar essa lógica depende de os cidadãos revigorarem o seu senso de participação e escolha. Depende também da valorização do arcabouço instrumental que possibilita qualificar o Estado. Há muitas pessoas e instituições produzindo evidências nesse sentido. Há projetos, há tecnologias e há lideranças dispostas a aproveitar esse potencial. Mas, para que isso aconteça, será necessário desintoxicar o debate político, direcionando-o para o que importa: não uma disputa entre o “bem” e o “mal”, mas sim entre aquilo que funciona e o que não funciona.

Orçamento expõe desafio fiscal do próximo governo

Valor Econômico

Dados do dia a dia tendem a voltar ao terreno negativo, sem uma âncora fiscal que ajude a coordenar as expectativas

O Projeto de Lei Orçamentária de 2023, enviado pelo governo ao Congresso Nacional na semana passada, traça um cenário macroeconômico muito otimista para as receitas e deixa de fora despesas que são praticamente certas. Da forma como foi desenhado, é um esboço incompleto das dificuldades que vai enfrentar o presidente da República a ser eleito em outubro.

A nota de política fiscal do Banco Central de julho ilustra bem o desafio para recolocar as contas públicas na trajetória da solvência. Neste ano, com todos os ventos favoráveis para o governo, como a valorização das commodities, a inflação muito alta e economia com sinais de superaquecimento, o governo acumula um superávit primário de 2,48% do Produto Interno Bruto (PIB) no período de 12 meses acumulado até julho.

Mas a perspectiva, até o final do ano, é de redução no superávit. Os economistas do setor privado citam percentuais em torno de 1% do PIB. É insuficiente para a estabilizar a dívida bruta - na verdade, precisaria baixar, pois se encontra em elevados 77,6% do PIB.

Uma regra de bolso usada pelos economistas diz que o primário necessário para estabilizar a dívida pública corresponde à diferença entre a tendência de crescimento da economia no longo prazo (o PIB potencial) e a taxa de juros real que deve vigorar no longo prazo (o juro neutro).

A julgar pelo desempenho da economia na última década, o PIB potencial dificilmente supera 1%. Já a taxa de juros neutra, que o Banco Central chegou a estimar em 3% ao ano, está em alta, em virtude das incertezas fiscais e da piora do cenário externo. Hoje, as estimativas do mercado para o juro neutro estão entre 4% e 5%. Ou seja, o superávit primário para estabilizar a dívida pública estaria em, no mínimo, 3%.

Mas o que já é insuficiente ficará ainda pior. O governo estima na proposta do Orçamento a volta do déficit primário, com um resultado negativo de R$ 63,7 bilhões, o que equivale a cerca de 0,6% do PIB estimado para o período. Com esse déficit, a equipe econômica reconhece que a dívida bruta vai voltar a subir, para 79% do PIB

 

Mas as premissas macroeconômicas usadas nesses cálculos estão sob questão. O Orçamento se baseia numa previsão de crescimento do PIB de 2,5%, enquanto que a mediana das projeções do boletim Focus está em 0,38%. É possível que as previsões do mercado subam um pouco nas próximas semanas, depois da surpresa positiva do PIB do segundo trimestre, mas devem ficar bem longe do cenário otimista do governo.

Com o PIB inflado, a projeção de receitas tende a ficar superestimada e, como consequência, a estimativa para o déficit primário, subestimada. Outro efeito dessa previsão exagerada para o crescimento da economia é que a trajetória para a relação dívida/PIB fica menos desfavorável.

Como se não bastasse, há despesas certas que ficaram fora do Orçamento. A proposta prevê recursos apenas para o pagamento do auxilio emergencial de R$ 405, enquanto que os dois candidatos que lideram a disputa eleitoral já se comprometeram com a continuidade dos R$ 600 em janeiro. Somente essa diferença aumenta o déficit primário em 0,48 ponto percentual do PIB.

No Congresso, as despesas e renúncias de receitas tendem a crescer. O relator da proposta do Orçamento, senador Marcelo Castro (MDB-PI), já indicou que quer ampliar o reajuste do funcionalismo do Executivo e aprovar a correção da tabela do Imposto de Renda. O objetivo, no caso do funcionalismo, é equiparar o reajuste ao do Judiciário, que vai receber 9% em 2023 e 9% em 2024.

O próprio governo procurou queimar, no Orçamento, qualquer excesso de superávit primário em relação à meta de R$ 65,9 bilhões definida na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). A mensagem do Executivo reserva R$ 52,9 bilhões para a manutenção dos cortes de impostos incidentes nos combustíveis, numa tentativa de segurar o aumento da inflação esperada para o começo do ano que vem, quando esse benefício tributário deveria expirar. Será um alívio temporário, porém, que não reduz o desafio do Banco Central para colocar a inflação dentro das metas.

Nos últimos anos, o governo destruiu o teto de gastos, mas alegava que, no curto prazo, a execução fiscal ia bem. O Orçamento de 2023 expõe o quanto essa melhora era ilusória. Agora, os dados do dia a dia tendem a voltar ao terreno negativo, sem uma âncora fiscal que ajude a coordenar as expectativas em torno do ajuste de médio prazo.

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