O Globo
O último líder soviético desarmou a maior
bomba-relógio do século XX
Mikhail Gorbachev desarmou a maior
bomba-relógio do século XX. O timoneiro do naufrágio do Estado soviético
desviou a nau fracassada dos escolhos da guerra civil e da guerra nuclear. A
humanidade deve-lhe isso.
Não foi do jeito que ele queria. Gorbachev
engajou-se na reforma da URSS, mas acabou gerenciando sua implosão. Imaginou um
país de cidadãos livres, em que a lei prevaleceria; no fim, à sombra de um Z
que é meia suástica, a Rússia tornou-se uma
autocracia repressiva onde a palavra “paz” foi criminalizada. Sonhou com uma
URSS integrada a uma Europa sem alianças militares; hoje, a Rússia putinista
está mais isolada da Europa do que nunca, condenando-se a operar como posto de
combustíveis da China.
O último líder soviético inspirava-se não em Marx ou Lênin, mas em Vissarion Belinsky (1811-1848) e Alexander Herzen (1812-1870), pensadores russos atraídos pelas ideias liberais e socialistas que sopravam da Europa. Belinsky escreveu uma carta aberta clamando pelo fim da servidão camponesa — e Dostoiévski foi preso por lê-la em eventos públicos. Herzen enxergou o caminho do futuro na Revolução Francesa e semeou as ideias do socialismo agrário russo.
A dignidade do indivíduo: a base da revolta
intelectual de Belinsky e Herzen contra o regime czarista foi, também, a fonte
das reformas de Gorbachev. A glasnost e a perestroika destinavam-se a explodir
o sistema totalitário, instituindo os direitos de cidadania. “Tudo o que não é
explicitamente proibido pela lei é permitido” — a sentença de Gorbachev, uma
reiteração do óbvio, tinha vibrações revolucionárias na URSS da opressão
estatal e do conformismo social.
No início de 1991, Gorbachev cometeu um
pecado capital. Violando suas convicções, enviou tanques soviéticos para destituir
o governo eleito da Lituânia, que acabara de declarar independência. O gesto
brutal extinguiu a chama das reformas.
O derradeiro presidente da URSS não foi deposto.
Deixou o poder porque o Estado soviético desapareceu, em dezembro de 1991, na
esteira das declarações de independência da Rússia, da Ucrânia e da Belarus.
Gorbachev disputou as eleições presidenciais russas de 1996, realizadas em meio
a uma paisagem de ruínas, obtendo 0,5% dos votos. Na época, os russos o viam
como um tolo, que não usara o poder para fazer fortuna, ou como um néscio, que
destruíra o “Império Vermelho”.
A trajetória rumo à autocracia não pode ser
explicada sem uma referência ao colossal equívoco geopolítico do Ocidente, que
rechaçou a ideia de formular um Plano Marshall para a Rússia. Depois do caos, o
poder pousou no colo de um cinzento funcionário da antiga KGB, que se cercou de
colegas das agências de inteligência para configurar um Estado policial. Do
ponto de vista do nacionalismo grão-russo reorganizado ao redor de Putin,
Gorbachev é um traidor da pátria: o promotor da implosão da URSS, “maior
catástrofe geopolítica do século XX”.
Na URSS em dissolução, surgiram os
magnatas, figuras que se aproveitaram do acesso ao Estado para saquear os bens
públicos, acumulando vultosos patrimônios. Gorbachev não participou da farra.
Viveu como um cidadão de classe média — e usou o dinheiro recebido pelo Nobel
da Paz de 1990 para ajudar a financiar um novo jornal democrático, a Novaya
Gazeta. Sete de seus jornalistas foram assassinados desde a ascensão de Putin.
Dmitry Muratov, seu editor-chefe, recebeu o Nobel da Paz de 2021. Desde o
início da invasão da Ucrânia, o jornal foi impedido de circular na Rússia.
Gorbachev completou sua ruptura com Putin
em 2011, acusando-o de “subordinar a sociedade ao Estado”. Acompanhou, com
apreensão crescente, os movimentos paralelos de expansão da Otan e de
adensamento do revanchismo grão-russo. A guerra, a guerra total — era isso que
mais temia.
A morte, por leucemia, de Raisa Gorbachev, amor da sua vida, atingiu-o como um petardo em 1999. A dor não passou nunca. Raisa era de origem ucraniana — e Gorbachev a chamava “minha Ucrânia”. Faz sentido que ele tenha morrido durante a guerra de agressão promovida por um Estado russo ainda incapaz de reconhecer a dignidade do indivíduo.
Putin,Bolsonaro,Trump...
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