O Globo
Nossos amados ou odiados ‘políticos’ não
vieram de Marte, Pasárgada, inferno ou céu, mas são nossos amigos, filhos e
compadres
O da Colônia ou o do Império, o do
republicanismo elitista ou o democrático, o do sertão ou o do litoral, o dos
aristocratas ou o Brasil polarizado
e sectário de hoje?
No meu trabalho, distingo um Brasil lido
como sociedade (costumes e cultura) de um Brasil representado como nação e
Estado nacional. O primeiro seria governado por hábitos do coração, conforme
diriam Rousseau e Tocqueville; o segundo, administrado por uma legião de leis e
procedimentos jurídicos.
Nossas sociologias e politicologias falam
do Brasil como Estado nacional e pouco do Brasil como um sistema de valores. E
menos ainda dos diálogos, dilemas e paradoxos dos encontros entre esses Brasis.
Um encontro responsável pela emergência de estadolatria, estadomania e estadopatia. Sem perceber que não há governo sem sociedade e que povo e governo não podem ser inimigos, numa polarização em que um “Estado forte” (ou uma “Nova República”) deveria corrigir uma sociedade velha e fraca, a solução tem sido a adoção de “estadolatrias” messiânicas. Despotismos, entretanto, destinados a se desfazer porque os hábitos relacionais do “Brasil sociedade” acabam englobando e criando uma inércia histórica promotora de retornos aterradores, das tais leis que não pegam.
Uma visão enviesada do Brasil engendra
batalhas entre costumes não escritos (mas estabelecidos) e leis explícitas
(destinadas a corrigir a índole de tais costumes). Ela conduz ao que estamos
revivendo hoje: um momento eleitoral que seria de futuro nos leva ao passado
justamente porque há um impasse entre o “Brasil nação” e o “Brasil das
simpatias populistas”. O Brasil das impessoalidades legais encontra seu limite
no Brasil das pessoalidades do “você sabe com quem está falando?” e das “leis
que não pegam”.
O Brasil dos personalismos avessos à
igualdade é mais resistente que o das normas que valem para todos. Mas como ter
normas valendo para todos sem realizar uma crítica honesta do peso das
obrigações familísticas? Não para liquidá-las, mas seria possível
neutralizá-las escolhendo os valores democráticos da liberdade sem esquecer a
igualdade.
Um primo é por mim nomeado ministro. Devo
tratá-lo como primo ou como ministro? Ele se comportará como dono do meu
governo ou como um funcionário? Se houver um conflito entre o ministério e o
governo, ele agirá como primo ou como ministro?
Essas são questões que jamais discutimos
francamente, que foram providencialmente esquecidas por nossa agenda
democrática, que teria de passar a limpo o Brasil da casa pelo Brasil impessoal
da rua e vice-versa.
A dificuldade com a democracia tem a ver
com esse dilema entre o poder insuspeito da simpatia pessoal, que tende ao
segredo e à corrupção, e a demanda da liberdade igualitária, que tende ao mundo
público da impessoalidade e do anonimato — esses pilares do dinamismo
democrático.
Em relação ao tamanho imenso da tarefa de
implantar democracias em sociedades relacionais e patriarcais, há a dificuldade
de perceber que nossos amados ou odiados “políticos” não vieram de Marte, de
Pasárgada, do inferno ou do céu, mas são nossos amigos, filhos e compadres. As
acusações quase sempre irascíveis com que os tratamos só podem ser
compreendidas quando nos damos conta do isolamento com que situamos o
“político” num campo em que o “poder” — como uma ponte desgastada entre o
pessoal e o impessoal — tem a elasticidade das simpatias e conveniências. Do
ganhar brutalmente muito dinheiro até o dobrar (ou driblar) legalismos para
favorecer os amigos.
Com isso, entramos no terreno da
impunidade, mas isso é, como diria o poeta, uma outra história...
Sabe com quem está falando? Com esta onda digital temos visto com frequência esta perguntinha.
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