segunda-feira, 17 de outubro de 2022

Bruno Carazza* - Os recados dos microdados eleitorais

Valor Econômico

Dados das urnas revelam preferência do eleitor

A mordaça imposta por Jair Bolsonaro aos militares que fizeram a auditoria do funcionamento das urnas eletrônicas vale mais do que qualquer relatório para atestar a segurança e a confiabilidade do sistema brasileiro de votação, registro e contagem de votos.

Com milhões de bolsonaristas mobilizados, bem como diversos órgãos civis e militares dos Três Poderes e ainda dezenas de entidades representativas da sociedade, não houve relato de nenhum incidente capaz de colocar em dúvida o resultado das urnas. Como acontece há décadas, a Justiça Eleitoral triunfou mais uma vez.

Para além da eficiência e da segurança, nosso sistema eleitoral também é referência mundial na transparência e na qualidade dos dados divulgados. Qualquer cidadão pode acessar com relativa facilidade informações pessoais, arrecadação e despesas de candidatos, assim como o perfil do eleitorado e o resultado da votação. Tudo isso nos permite ter uma visão mais detalhada sobre os movimentos do jogo político e a preferência dos eleitores.

Na primeira semana após o primeiro turno, imprensa e analistas se debruçaram sobre os resultados para extrair tendências, identificando quais regiões demonstraram uma preferência por este ou aquele candidato, se programas do governo deram voto ou quais estratégias de marketing eleitoral funcionaram melhor ou pior, e por aí vai.

Existe, porém, uma base de dados do TSE que, por ser muito trabalhosa, quase não é explorada pelos analistas. O que é uma pena, pois ela nos permite uma visão quase microscópica do comportamento dos eleitores no dia da votação.

Menos de 48 horas após o encerramento da votação, o Tribunal Superior Eleitoral disponibilizou no seu portal de dados abertos os arquivos do resultado das urnas em cada uma das quase 500 mil seções eleitorais espalhadas pelo território nacional e exterior. Trata-se de uma fonte valiosíssima de informações para verificar o que se passa na cabeça do eleitor brasileiro, uma vez que cada seção eleitoral comporta, em média, 330 cidadãos aptos a votar.

O potencial de utilização desses dados para fins de análise eleitoral é multiplicado porque o mesmo TSE publica também no seu portal de transparência o perfil do eleitorado em cada uma dessas seções, indicando quantos eleitores estão aptos a votar de acordo com a sua faixa etária, estado civil, grau de escolaridade e gênero.

Quer saber se Bolsonaro recebeu mais votos nas seções onde existem mais idosos ou se Lula realmente recebeu mais votos nas áreas com maioria feminina? Basta cruzar os dados da votação em cada seção com o seu perfil etário ou de gênero.

Como em geral no Brasil a distribuição de renda tem um forte conteúdo territorial dentro de cada cidade, e ela está associada ao nível de escolaridade, esses dados também podem revelar muito sobre como pobres e ricos se posicionaram em relação a cada candidato.

É claro que nem tudo é perfeito em relação a esses dados. Em primeiro lugar, os arquivos são muito pesados e dão um certo trabalho para serem manipulados. Além disso, o zoneamento eleitoral nem sempre guarda relação com as características econômicas das cidades - muitas vezes a mesma seção cobre bairros ricos e pobres que são vizinhos.

Por fim, as informações sobre o perfil do eleitorado nem sempre são as mais atuais, pois as pessoas mudam de residência e não transferem seus títulos, além do que podem se casar e se divorciar, obter um nível maior de escolaridade e até trocar de gênero sem comunicar essas mudanças ao TSE.

Para a felicidade dos estudiosos, o processo de recadastramento biométrico forçou cerca de 75% dos eleitores brasileiros a se dirigirem à Justiça Eleitoral na última década, levando a uma atualização dos dados. Uma evidência de como a biometria melhorou a qualidade dos dados é que, apesar de a taxa de abstenção continuar negativamente relacionada com o percentual de eleitores com biometria, o coeficiente de determinação foi baixo, na casa de 0,07.

Tomando por base os dados da votação e do perfil dos votantes por seção eleitoral, quais conclusões podemos tirar desse primeiro turno em relação aos desempenhos de Lula e Bolsonaro?

Vencedor do primeiro turno, o ex-presidente Lula demonstrou uma forte correlação positiva entre seus votos e o percentual de eleitores em cada seção com baixa escolaridade (analfabetos, semianalfabetos e com fundamental incompleto), assim com seus votos caem conforme há mais inscritos com nível superior na seção eleitoral. A evidência dos microdados eleitorais reforça a percepção de que Lula foi melhor nas regiões periféricas e de menor renda, onde se verifica um grau de escolaridade mais baixo.

Em termos das interações com os demais candidatos, chama a atenção que há uma forte correlação negativa entre as votações de Lula e de Simone Tebet. Ou seja, nas seções onde a senadora sul-matogrossense foi melhor, Lula teve menos votos. Isso é um recado para a estratégia de eleitoral de Lula neste segundo turno: o tom de seu discurso pode não ter a mesma receptividade nas regiões onde residem os eleitores de Tebet.

Num país tão dividido, os resultados de Bolsonaro vão na direção inversa da obtida pelo petista. O atual presidente tem pior desempenho nas seções de baixa escolaridade - nesse caso, a forte rejeição de Bolsonaro no Nordeste puxa o resultado para baixo, mas há uma correlação negativa entre escolaridade e voto bolsonarista também no Sudeste e Sul do país.

Ao contrário do que seria de se esperar (e indicado pelas pesquisas), não há sinais significativos de uma rejeição maior a Bolsonaro nas seções com mais mulheres e nem uma preferência explícita por ele onde predominam os idosos.

Na briga pelos votos angariados por Ciro e Simone no primeiro turno, os microdados das seções eleitorais revelam que Bolsonaro em geral foi melhor nas áreas que preferiram Tebet - em relação a Ciro, a correlação é negativa, mas estatisticamente irrelevante.

Com as pesquisas passando por uma fase de credibilidade abalada, fica a dica para quem quiser mergulhar nos microdados do TSE. Dá trabalho, mas eles oferecem alguns insights muito valiosos para mapear as estratégias dos candidatos.

*Bruno Carazza é mestre em economia e doutor em direito, é autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro” (Companhia das Letras)”. 

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