segunda-feira, 17 de outubro de 2022

Sergio Lamucci - A luta pela credibilidade fiscal em 2023

Valor Econômico

Definição de nova âncora para as contas públicas será essencial

Coordenar as expectativas sobre as contas públicas será um dos primeiros grandes desafios do próximo governo. Além de definir o montante da licença para elevar gastos em 2023, será preciso desenhar uma nova regra fiscal que assegure uma trajetória confiável de estabilização e queda da dívida pública como proporção do PIB ao longo do tempo. Se for bem sucedido nessa tarefa, quem vencer as eleições neste ano reduzirá incertezas importantes, num ano a ser marcado pelo impacto pleno do ciclo de alta da Selic sobre a atividade e por um cenário externo mais adverso, com juros mais elevados no mundo desenvolvido e o risco de uma recessão global.

Ex-secretário do Tesouro nos governos de Michel Temer e de Jair Bolsonaro, Mansueto Almeida avalia que o país tem como se destacar no ambiente complicado que se desenha para os emergentes em 2023, desde que mostre sinais “de responsabilidade fiscal e compromisso com as reformas, como a tributária”. Na semana passada, Mansueto esteve em Nova York para reuniões com investidores. Segundo ele, todos olham com “curiosidade” para dois emergentes - o México, pela proximidade com os EUA, e o Brasil.

 “No caso do Brasil, os dados fiscais de 2021 e 2022, de resultado primário [que exclui gastos com juros] e dívida pública, de crescimento do PIB e do mercado de trabalho foram muito melhores do que todo mundo esperava”, diz ele, hoje economista-chefe do BTG Pactual. Além disso, acrescenta Mansueto, o país tem um déficit em conta corrente baixo e houve um aumento forte do investimento direto estrangeiro, que foi de US$ 46 bilhões em 2021 e deve atingir US$ 80 bilhões em 2022.

A primeira tarefa no campo fiscal para 2023 será definir o tamanho da licença para aumentar gastos. O principal é a elevação das despesas para custear a manutenção do Auxílio Brasil em R$ 600, o que exige R$ 52 bilhões a mais do que os R$ 105,7 bilhões reservados no projeto de lei orçamentária anual (PLOA) de 2023 para pagar um benefício de valor médio de R$ 405. Há estimativas de que a licença total poderá ficar entre R$ 100 bilhões e R$ 150 bilhões, a depender do que for incluído, como um eventual reajuste dos salários do funcionalismo.

Mansueto diz que, “pela regras atuais, o crescimento do teto de gastos no próximo ano será um pouco acima de R$ 100 bilhões”. Para ele, será um exagero se, além desse valor, for aberto um espaço adicional de R$ 150 bilhões no ano que vem, sem contar que poderia ser perigoso pelo efeito na inflação. “Acho que o mercado aceitaria bem um ‘waiver’ [a licença mais despesas] pequeno, de R$ 50 bilhões a 60 bilhões para acomodar o Auxílio Brasil, junto com uma nova regra fiscal”, diz Mansueto. “E, se o ‘waiver’ for muito grande, podemos ter a política fiscal trabalhando contra a política monetária”, afirma Mansueto, lembrando que os juros já estão elevados para combater a inflação. Se os gastos públicos aumentarem muito em 2023, o Banco Central (BC) pode atrasar o início do ciclo de queda da Selic, um movimento que pode eventualmente começar no segundo trimestre do ano que vem. Taxas altas por mais tempo afetariam o ritmo de crescimento da economia, além de elevar o custo fiscal, por engordar os gastos com juros.

Mansueto cita ainda a incerteza em relação às despesas com pessoal da União. A expectativa é que haverá algum aumento de gastos com o funcionalismo em 2023, após o governo segurar esses dispêndios nos últimos anos, ao não conceder reajustes lineares aos servidores. “Mas o ideal é que seja um aumento parcelado, que não reverta totalmente a economia de 0,8 ponto do PIB que o governo conseguiu de 2018 a 2022”, diz Mansueto. Em 2018, os gastos com pessoal da União eram de 4,3% do PIB; neste ano, devem ficar em 3,5% do PIB. A redução do número de funcionários públicos federais da ativa a partir de 2017 também ajudou nesse recuo.

Ele menciona como exemplo o ajuste realizado por Paulo Hartung nas contas do governo do Espírito Santo entre 2015 e 2018. O ex-governador capixaba passou três anos sem reajustar os salários do funcionalismo e, quando voltou a dar aumento, não fez a compensação integral dos três anos anteriores, segundo Mansueto. “Assim, o Estado ficou com uma folha de pessoal mais baixa, teve dinheiro para pagar as contas em dia e ainda fazer investimentos”, diz ele. “No fim do governo Temer, o Espírito Santo era o único Estado com nota ‘A’”, afirma Mansueto, para quem o desafio é fazer algo parecido no âmbito federal, além da tentativa de aprovar uma reforma administrativa.

Do ponto de vista estrutural, a grande tarefa será a definição de uma nova regra fiscal, depois que a credibilidade do teto de gastos foi solapada por diversas manobras para driblá-lo. Mansueto nota que, em 2023, o país voltará a ter déficit primário - o BTG Pactual, por exemplo, projeta um rombo de 0,4% do PIB nas contas do setor público consolidado no ano que vem e um superávit de 1,3% do PIB neste ano. “Mostrar como vamos transformar um déficit em superávit primário recorrente para pelo menos estabilizar a dívida/PIB no fim do proximo governo seria importante”, afirma ele. Para Mansueto, além de uma regra fiscal crível e que indique uma trajetória sustentável para a dívida pública, também é fundamental que o próximo governo deixe claro o compromisso com a agenda ambiental e normas ESG (a sigla em inglês para práticas ambientais, sociais e de governança) e com a agenda de reformas, como a tributária.

Com sinais de responsabilidade fiscal e de que há intenção de avançar nas reformas, o Brasil pode se sobressair entre os emergentes, diz Mansueto. Para ele, o mundo de maior risco geopolítico entre EUA e China não deve afetar muito o Brasil - os dois países “já são os nossos principais parceiros comerciais, e isso deve continuar”, avalia. O ex-secretário do Tesouro cita ainda outro fator positivo para o Brasil. Segundo ele, há “um crescimento contratado em infraestrutura com as concessões que já ocorreram, de cerca de 0,7% do PIB por ano”, considerando um horizonte de quatro a cinco anos, com fonte de financiamento privada, via mercado de capitais.

Se o próximo governo souber coordenar as expectativas em relação às contas públicas, a atividade econômica poderá voltar a ganhar fôlego na segunda metade do ano que vem e especialmente a partir de 2024. A luta para assegurar a credibilidade fiscal do próximo governo, porém, começará a ser travada ainda neste ano, após o segundo turno das eleições, quando o vencedor deverá enfim divulgar mais detalhes do que pretende fazer com as contas do governo.

 

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