O Estado de S. Paulo
A temperança se contrapõe à violência. É a
virtude que se exige para conter a onipresença atual doânimo dos extremos.
É relevante a ressonância da obra de Bobbio
entre nós. Amplamente acessível em português, ocupa espaço próprio na lúcida
clarificação da Política e do Direito. Conjuga-se com o papel de Bobbio, que
transcende a Itália, de intelectual público voltado para a afirmação da
democracia, dos direitos humanos e da paz.
Acaba de ser publicada a edição brasileira
de Norberto Bobbio – uma biografia cultural, de Mario Losano, eminente
professor emérito italiano de Filosofia e Direito. São características de
Losano o admirável escrúpulo da pesquisa e a medida no julgar e apreciar a
complexidade das coisas. Foi o que norteou a elaboração desta biografia cultural
na qual traçou com precisão cartográfica o mapa de sua abrangente obra e os
significativos caminhos de sua vida.
Instigado pelo livro de Losano e pela minha conhecida dedicação a Bobbio, vou elencar alguns dos temas recorrentes de sua agenda que são um pano de fundo relevante para o Brasil nesta antevéspera de segundo turno das eleições presidenciais. Começo pelo fascismo.
Os anos de formação e do início do
magistério de Bobbio transcorreram na Itália do fascismo de Mussolini, que ele
identificou como um dos paradigmas da era dos extremos do século 20. Foram
características dos valores e práticas do regime fascista na análise de Bobbio:
a glorificação da violência; a contestação da democracia, do Estado de Direito
e da divisão dos Poderes; a afirmação belicosa de um Estado potência no plano
internacional; a hiperpersonalização do poder como desdobramento do apreço
incontido pelo chefe; o apelo aos ressentidos e desenraizados; a substituição
do pensamento pelo primado da ação e do movimento.
A obra de Bobbio é uma contestação às
práticas e valores do fascismo e do que representou e representa. Foi nesta
linha que afirmou a primazia do governo das leis em contraposição ao governo
dos homens.
A forma institucional moderna do governo
das leis é o constitucionalismo. Num regime constitucional, governantes e
governados atuam sob o império da lei, e o poder dos governantes é regulado por
normas jurídicas e deve ser exercido em conformidade com elas. Num Estado de
Direito constitucional, a ação política submete-se não apenas aos juízos de
eficiência, mas também ao da conformidade com as normas fundamentais da
Constituição. A dimensão institucional do constitucionalismo pressupõe a
separação dos Poderes e a tutela dos direitos humanos que consagra a vigência
da perspectiva dos governados e dos seus direitos políticos e sociais.
Bobbio aprofunda o alcance do governo das
leis mediante a formulação das regras do jogo democrático como regras de
procedimento para a formação da decisão coletiva. Isso inclui o sufrágio
universal em eleições periódicas, a regra de maioria que dela resulta, o
respeito aos adversários que podem se tornar maioria, o livre debate das
alternativas e a preservação das instituições sob a égide do Estado de Direito.
Bobbio define o governo de democracia, que
conta cabeças e não corta cabeças, como aquele que postula visibilidade e
transparência do poder, ou seja, o exercício em público do poder comum, pois
aquilo que é de interesse de todos deve ser do conhecimento de todos. Daí a
contestação ao segredo: ao poder que oculta as coisas nas arcas do Estado e ao
poder que se esconde, escondendo por meio da mentira.
Bobbio analisa os riscos da guerra no mundo
contemporâneo que se magnificaram com o inédito poder aniquilador das armas
nucleares, ampliadas pelo impacto destruidor que a inovação
científico-tecnológica confere às armas tidas como convencionais. Explicita que
é instável e precária a paz lastreada na balança de uma geopolítica de poder.
Por isso, para Bobbio, a paz não se
circunscreve à momentânea ausência de guerra. A paz é um valor e precisa ser
construída por um pacifismo ativo. O que anima o pacifismo de Bobbio é um
pacifismo de meios e de fins que leva em conta que a violência não é parteira
da história, e “está se tornando cada vez mais o seu coveiro”.
Bobbio discute a laicidade e o espírito
laico como uma regra de comportamento num Estado Democrático não confessional.
O espírito laico contrapõe-se a todas as formas de intolerância, exclusivismos
e fanatismos, impeditivos da convivência inerente ao pluralismo da sociedade. A
laicidade assegura a plena liberdade religiosa no espaço do privado e da
sensibilidade dos fiéis, mas postula que no âmbito do espaço público as
alternativas e as opções se dão no mundo dos homens e não provêm da palavra de Deus.
Bobbio fez o elogio da mitezza,
palavra que foi traduzida em português por serenidade e em espanhol
por temperança. É uma virtude do espírito laico que se corporifica numa
postura de respeitar as ideias alheias, de empenhar-se em compreender antes de
discutir, de discutir antes de condenar e de ter medida no julgar perante a
complexidade das coisas. A temperança se contrapõe à violência. É a virtude que
se exige para conter a onipresença atual do ânimo dos extremos.
*Professor emérito da Faculdade de Direito
da USP, foi ministro de Relações Exteriores (1992 e 2001-2002)
Excelente artigo sobre o pensamento de Norberto Bobbio. Agora considerando os conceitos de Bobbio e aplicando ao Brasil a gente conclui que Bolsonaro é fascista ou pelo menos um candidato a tanto. Não, é claro, um fascista sério como o Führer ou Benito Mussolini, mas uma caricatura aloprada. Vou me ater apenas a um detalhe do pensamento de Bobbio. É o que diz respeito à visibilidade e transparência do poder. O exercício em público do poder comum. A contestação democrática do segredo. O boçal todos sabem, usa e abusa do decreto de cem anos de sigilo para coisas ridículas como as visitas de seus filhos ao Palácio do Planalto, as reuniões de Micheque (certamente com pastores) na Granja do Torto, a carteira de vacinação do próprio Bolsonaro, informações sobre as rachadinhas do filhote 01, o processo movido pelo Exército contra o general Pazuello por fazer campanha política para o presidente, sendo ele um general da ativa. Uma primeira curiosidade é por que cem anos? Um século não é um tempo absurdamente longo? Li há pouco neste blog texto de Elio Gaspari sobre um processo envolvendo soldados que fumavam maconha e foram torturados e mortos. O sigilo para esse caso durou 50 anos que se passaram e um historiador levantou toda a história. Uma história envolvendo homicídios de inocentes não deveria ser ocultada por tempo nenhum e nem maracutaias de um candidato a fascista. Abaixo o fascismo!
ResponderExcluirExcelente artigo,temperança e serenidade é o que falta no País de Bolsonaro.A esquerda,as vezes,se destempera também.
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