sábado, 8 de outubro de 2022

Demétrio Magnoli - Canções do exílio

Folha de S. Paulo

Cada um a seu modo, analistas declaram-se estrangeiros na sua própria terra

"Como libertar as pessoas do cabresto religioso? Do cabresto miliciano? Do cabresto midiático?", indagou a filósofa petista Marcia Tiburi. A pergunta certa é outra: de onde ela tirou a ideia de que os eleitores do candidato adversário são menos livres que ela? Ou: como libertar as Marcias Tiburis da torre da autoproclamada superioridade moral?

Missão impossível, talvez. Segundo o colunista da Folha Alvaro Costa e Silva, "quase metade dos eleitores decidiu que a destruição do país deve prosseguir". Seriam, todos eles, "fascistas", "racistas", "misóginos", "genocidas"? Quando foi que o jornalismo político desistiu de investigar o comportamento dos eleitores, entregando-se ao esporte primitivo de insultar os que votam "errado"?

"Estou num país muçulmano; já não falo português, já não entendo o que dizem", confessa Marcelo Coelho, para quem "os eleitores de Bozo são impermeáveis às notícias sobre a corrupção de seus mitos". O problema do Brasil não é a saúva, mas o povinho que o habita, certo?

Numa vertente de filmes pós-apocalípticos, os humanos saudáveis remanescentes enfrentam, em terras inóspitas, emboscadas de chusmas de deformados pela radiação, que cobrem suas feridas com andrajos. É mais ou menos assim que tantos comentaristas de esquerda descrevem o Brasil das urnas de domingo. Como, nessas condições, persuadir uma esmagadora maioria a enterrar o desgoverno bolsonarista?

Os três analistas mencionados não devem ler essas linhas como crítica pessoal: selecionei-os ao acaso, como ilustrações de um fenômeno cristalizado de alienação política. Eles residem em São Paulo ou no Rio, mas escrevem como se vivessem em Wanderley (BA), onde 97% sufragaram Lula. Nunca ouviram os argumentos de pessoas comuns, que não são fanáticos ideológicos ou religiosos mas votaram em Bolsonaro?

O primeiro turno assumiu a configuração de turno final: o voto oscilou ao sabor da dupla rejeição. Fora do estrato mais pobre, as taxas de rejeição a Lula superam as de Bolsonaro, inclusive na classe média-baixa. Milhões de eleitores de Lula não votaram no mensalão, no petrolão, na bolsa-empresário, no populismo fiscal ou na celebração da ditadura venezuelana —mas contra Bolsonaro.

Do lado oposto, a "quase metade dos eleitores" não votou na cloroquina, no retorno à ditadura militar, na "rachadinha", na devastação ambiental ou na terra plana. Escolheram sua versão do "voto útil": evitar a volta de Lula. Certo ou errado, é um gesto político, não uma profanação moral.

Quando Serra foi batido por Dilma, disseminou-se no universo antipetista a tese de que a escolha majoritária derivava do Bolsa Família. Seria "cabresto", "voto comprado", não a tradução eleitoral de percepções políticas racionais. Hoje, simetricamente, sugere-se que a maioria dos eleitores do Centro-Sul —os reféns de Tiburi, os "muçulmanos" de Coelho— operam como massas de manobra das "forças do Mal". Busca-se, agora como antes, um álibi. No fundo, trata-se de exibir a rejeição a Lula como fruto da irracionalidade, do preconceito ou de pura maldade.

Democracia é o sistema fundado no consenso de que a opinião dos outros é tão legítima quanto a minha. Daí, surgem as implicações da liberdade de expressão e do voto universal. "O Brasil precisa de diálogo e paz", respondeu Lula, agradecendo a declaração de voto de FHC. O pressuposto para as duas coisas é a disposição de ouvir as razões de 43% do eleitorado.

Costa e Silva, Tiburi e Coelho entoam canções do exílio. Cada um a seu modo, declaram-se estrangeiros na sua própria terra: sábios perplexos sitiados por gente que fala línguas estranhas. No fim, graças à rejeição ainda maior a Bolsonaro, Lula provavelmente vencerá. A festa secará a angústia, substituindo-a pelo regozijo. Aliviados, continuaremos sem entender —sem nem tentar entender!— os "muçulmanos".

9 comentários:

  1. Mais um jornalista a dar posse ao Luladrão antes da hora
    O ex presidiário será derrotado para o bem de todos e felicidade geral da nação
    Deus Pátria família liberdade
    Presidente será reeleito

    ResponderExcluir
  2. Aqui quem não vota no Lula é gado. Quando a única coisa que desejo é
    entremos logo no primeiro mundo. By the way não gosto do Bolsonaro idem.

    ResponderExcluir
  3. A reportagem da Times com a opinião do Lula concordando com o Putin a respeito da invasão da Ucrânia é de uma temeridade absoluta. A Rússia ameaçando com armas nucleares e Usa, se for o caso, eliminar a frota de navios russos em retaliação, de que lado
    o Brasil vai ficar? Vai ser contra ou a favor da Rússia? Não podemos relegar a política externa do nosso país, algo tem que ser feito, se o Lula resolver acompanhar a América Latrina das bananeiras , com exceção do Chile, estaremos fritos.

    ResponderExcluir
  4. "Certo ou errado, é um gesto político, não uma profanação moral"

    É q sua definição de moral é falha. Defender a escravidão é, na sua opinião, apenas um gesto político?
    Sei q esta não é sua opinião. M, inha pergunta foi feita apenas pra demonstrar q determinados temas são definitivamente preto ou branco, ié, morais. Sem zona cinzenta.
    Bolsonarismo é um destes - porque se trata de fascismo.
    Fascismo é inaceitável MORAL e politicamente, né, Magnoli?
    Não interessa se as pessoas q votam no fascista sequer saibam o q é fascismo - elas deveriam saber. Votar em fascista É ERRADO e isso interessa, sim.

    ResponderExcluir
  5. Quem pode nos deixar mais próximo do primeiro mundo? Lula governou por 8 anos e melhorou a renda dos brasileiros, tinha respeito das potências mundiais, foi chadado de O CARA pelo Obama, que não era pouca coisa... Bolsonaro se achava amigo de Trump, que isolou os EUA do resto do mundo. Quando Trump caiu, o GENOCIDA nos deixou ISOLADOS do mundo, só falando com Putin/Rússia, Hungria e de vez em quando com a Turquia... O GENOCIDA e seu DESgoverno não existe para o resto do mundo! Bolsonaro faz um governo para os seus milicianos internos, não tem qualquer visão estratégica para nosso futuro com as outras nações!

    ResponderExcluir
  6. Em geral tenho críticas ao colunista, mas devo reconhecer que neste texto ele foi muito feliz e objetivo! Votarei sem qualquer dúvida em Lula novamente, contra o GENOCIDA, mas parte da argumentação dos apoiadores de Lula é mesmo infeliz. Parabéns ao colunista e ao blog que divulga seu trabalho.

    ResponderExcluir
  7. Não concordo com o colunista,há sempre o mal maior a ser evitado,nesta eleição o mal menor está mais do que claro,com todos os seus defeitos,santidade não existe na terra.

    ResponderExcluir
  8. O argumento do Demétrio é interessante. Mas cabe a pergunta a Alemanha democrática atual permite que se organize lá um partido neonazista? Não se deve dar chance do neofascismo se estabelecer. Um bolsonarista típico se recusa a ver quem de fato é seu candidato. Para eles "O governo Bolsonaro é um governo nacionalista, NÃO-CORRUPTO, tecnicamente competente e que não persegue ninguém!" (cito um amigo) É para rir ou chorar?

    ResponderExcluir