Folha de S. Paulo
O feitiço identitário volta-se contra os
feiticeiros e não só na distante ilha de Shakespeare
O gabinete original britânico da
primeira-ministra Liz Truss condensava
os sonhos mais extremos dos ideólogos das políticas identitárias. No seu
núcleo, as "Grandes Pastas de Estado", não figurava nenhum homem
branco. O (agora
demitido) ministro das Finanças, Kwasi Kwarteng,
é negro, filho de imigrantes de Gana. A mãe de James Cleverly, ministro do
Exterior, também negro, imigrou da Serra Leoa. A ministra do Interior, Suella
Braverman, é negra, filha de imigrantes africanos.
A descrição identitária não deve ocultar a descrição política. Truss formou o governo britânico mais conservador e sectário desde o pós-guerra. São leninistas da direita, segundo a Economist. Na economia, seguem uma cartilha ultraliberal de alegadas raízes thatcheristas. Na política, uma cartilha antieuropeísta e xenófoba apoiada na nostalgia da "Pequena Inglaterra".
O feitiço identitário volta-se contra os
feiticeiros —e não só na distante ilha de Shakespeare. Entre os deputados
federais eleitos no Brasil, a maioria absoluta dos autodeclarados
negros pertence a partidos da coalizão de Bolsonaro, com
destaque para PL, Republicanos e PP. No Senado, entre os seis eleitos que se
declaram negros, quatro pertencem a partidos bolsonaristas.
"Negro vota em negro", clamaram
ativistas do identitarismo racial. Ninguém sabe se a campanha funcionou, pois o
voto é secreto. Sabe-se, contudo, sem erro, que cor e ideologia andam em
trilhos separados.
Os porta-vozes da política identitária
ficaram confusos diante do gabinete ultraidentitário de Truss, mas escolheram
criticá-lo nos termos da linguagem identitária. "Não é suficiente ser
negro ou de uma minoria étnica; representação não é isso", fulminou um
deputado da esquerda trabalhista. Tradução: negros que pensam diferente de mim
não representam os negros.
Por aqui, sempre vamos além. "Os tais
candidatos negros de direita são negros mesmo?", tuitou o Instituto Luiz
Gama, presidido por Silvio Almeida. O insulto habitual é aplicar ao negro
"errado" o rótulo de "capataz da Casa Grande". No caso,
porém, inaugura-se o procedimento revolucionário de expropriação de cor: o
negro que não concorda com as políticas de raça nem negro será. Logo, alguém se
levantará para cassar a identidade étnica da indígena bolsonarista Silvia
Waiãpi, eleita deputada pelo Amapá.
O "voto identitário" não
funcionou, do ponto de vista da esquerda. Mas qual será o efeito eleitoral mais
amplo das políticas identitárias?
Nos EUA, ao longo de décadas, ajudaram a
empurrar a maioria dos brancos para o Partido Republicano – e já transferem
votos das minorias. Trump, o republicano mais à direita desde Barry Goldwater
(1964), incrementou sua parcela do voto hispânico entre 2016 e 2020 (29% a 32%,
a maior de um republicano desde 2004) e até do voto negro (8% a 12%, a maior de
um republicano desde 1980). Lá, a esquerda identitária amplia o eleitorado da
direita nacionalista e antidemocrática.
Há indícios de que algo similar ocorre no
Brasil. A direita bolsonarista replica o discurso identitário, mas com um
ajuste crucial, operando com signos de identidade que apelam à unidade: a
religião ("somos todos filhos de Deus") e a pátria ("todos somos
brasileiros"). A estratégia revela-se mais eficiente que a proposição de
fragmentar os cidadãos em grupos raciais condenados ao conflito perene. Como
atestam o gabinete de Liz Truss e a bancada negra bolsonarista, nada disso
impede a incorporação dos adereços do identitarismo racial.
Nossos parlamentares negros de direita não promoverão a reforma das polícias ou direitos universais à saúde e educação. Mesmo assim, a esquerda identitária tem algo a comemorar: eles não votarão contra a eternização das cotas raciais nas universidades —e, por interesse próprio, ajudarão a estendê-las para a distribuição de cadeiras no Congresso.
O colunista volta à sua rotina: tentar ocultar seus preconceitos misturando alhos com bugalhos...
ResponderExcluirDemétrio não tem medo de polêmica.
ResponderExcluirO movimento negro mente porque a Folha paga.O anônimo prova.
ResponderExcluirDemétrio na ferida!
MAM