O Globo
Na escolha entre Bolsonaro e Lula para
presidente estará gravado nosso retrato. A escolha é final e definitiva
Algumas coisas são tão autoevidentes que não precisam ser revisadas nem debatidas. Exemplo: o fato de a alimentação ser, há milênios, a única linguagem genuinamente universal. Do ser humano ao reino animal, passando pelo mundo das plantas, todo organismo vivo já nasce conhecendo essa gramática — sabe que, sem comida, sua vida se extingue. Em contrapartida, o que exige esforço máximo, quase inalcançável por cada um de nós, é a obrigação não nata de pensar no que somos. Toda a obra de Hannah Arendt trafega por essa necessidade. Somente quando admitirmos que “em nosso tempo” (seja ele qual for) tudo é possível, seremos capazes de nos confrontar com o que somos, de olhar com honestidade para o que nos tornamos e de saber o que queremos, ensinou a filósofa magna do século XX. Só assim “o homem consegue viver na fenda do tempo entre o passado e o futuro”, argumentava. No entender da autora, pensar é a única atividade capaz de se interpor entre nós e o mais hediondo dos males. Talvez pensasse estar encerrado o longo período da História em que a tradição, a religião e a autoridade funcionavam como substituto.
Arendt não poderia prever que o Brasil de
2022 estaria às voltas com a mesma tríade “tradição/religião/autoridade”, em
roupagem nova, bolsonarista — amoral, violenta, desumanizante, retrógrada. Mas
temos a oportunidade, agora, de nos encarar. Na escolha entre Jair
Bolsonaro e Luiz Inácio Lula da
Silva para presidente da República, estará gravado nosso retrato.
A escolha é final e definitiva, sem volta.
Queiramos ou não, ela responderá em parte à pergunta original de nossas vidas:
quem somos e o que queremos ser? Aldous Huxley, grande intelectual de linhagem
mais pacifista que Arendt, dizia que, para dar conta da complexidade de tal
pergunta, é preciso analisar também nossa relação com os outros, com a
natureza, com culturas de diferentes sociedades, com outros sistemas de
valores, com nosso próprio corpo e mente. É tanta coisa que, para ser completa,
acaba se tornando obra para uma vida inteira — e a maioria de nós a deixará
inacabada. Tudo bem, não se pode exigir tanto. Mas, da escolha entre Bolsonaro
e Lula, definiremos pelo menos o aspecto mais urgente da extraordinária
aventura que é viver em sociedade: queremos ou não manter o Brasil na trilha da
democracia? Ser democrata é diferente de “estar” democrata, por circunstância
ou interesse. Dá trabalho e exige persistência. Por ora, a Frente Ampla
estampada por Fernando Henrique Cardoso, Marina Silva, Simone Tebet, Ciro
Gomes, Geraldo Alckmin e Lula numa só moldura já é marco civilizatório a ser
festejado.
Poderia esse consenso mínimo ter sido
obtido há quatro anos, poupando o país de ser rapinado, ver corrompidas as
instituições públicas, aviltados a decência, a honra, a esperança, o futuro de
gerações? Pouco provável. Foi necessário o atual cenário de beira de abismo
democrático para que o voto consciente, encabulado ou não, emergisse da
complacência e se apresentasse na hora decisiva. O Brasil do presente e do
futuro agradece, pois, vez por outra, vale a pena fazer uma pausa na busca da
felicidade e simplesmente ser feliz. Como não se alegrar com o decidido passo
firme de Simone Tebet nessa frente, abrindo ala para o tucanato masculino mais
relevante do país? Tolstói, que sabia ler e retratar a alma humana, dizia que o
homem é como uma fração cujo numerador é o que ele realmente é, e o denominador
é o que ele acredita ser. Quanto maior o denominador, menor a fração. Vale para
todos nós, inclusive e sobretudo para Bolsonaro e Lula.
Não que, na eventualidade de vitória
eleitoral do candidato do PT, a penca de problemas sociais, econômicos, morais
e institucionais sumirá no raiar de janeiro de 2023. É até provável que a estes
ainda se somem outros tantos, ainda escondidos ou na tocaia. Mas o Brasil
voltaria a respirar com normalidade democrática para tentar seguir um rumo
novo. Coube ao sempre iluminado professor Silvio Almeida, em discurso de apoio
a Lula, desenhar esse rumo. — Queremos não o slogan ilusório do país do futuro.
Queremos mais que colocar os fascistas pra correr, ou reconstruir o Brasil.
Sabe o que queremos? Queremos um Brasil que nunca existiu — concluiu.
Ou seja, livre do racismo e das
desigualdades que sustentam o país há 500 anos.
E em caso de vitória de Bolsonaro? É continuar a olhar para a frente, para o que pode ser, diria Silvio Almeida.
Deus no comando.
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