O Globo
Um país arcaico, avesso à mudança, agarrado
à propriedade privada, obcecado com segurança
Uma justificativa para que sejam Lula e
Bolsonaro os candidatos que chegaram ao segundo turno é que, cada um a seu
modo, ambos representam o Brasil profundo.
Um Brasil arcaico, avesso à mudança,
agarrado à propriedade privada, obcecado com segurança, refém dos valores
herdados dos tataravós — um Brasil simples, que se veria traduzido num homem
comum, como Bolsonaro. Ou um Brasil que luta contra a adversidade, a miséria, o
desamparo e anseia por um líder messiânico, carismático, um pai dos pobres — um
Brasil humilde, que se reconheceria num homem do povo, como Lula.
Mas Bolsonaro não é simples: é simplório.
Lula não é do povo: é populista.
O Brasil profundo não tem nada a ver com esse das profundezas de onde emergiram janones, tiburis, nikolas, kicis, damares, zambellis, ninas, bolsonaros. O Brasil profundo é conservador, não reacionário. É religioso, não fanático. Quer justiça, não justiçamento. Prefere a liberdade à ditadura, o honesto ao corrupto, o sincero ao hipócrita, o sério ao fanfarrão. Não gosta da mentira, tampouco simpatiza com a censura. Cadê esse Brasil no segundo turno?
Brasil profundo — de verdade — é o que
gerou Clementina de Jesus, Patativa do Assaré, Cascatinha e Inhana, Alvarenga e
Ranchinho, Pixinguinha, Riachão. Mãe Menininha, Irmã Dulce, Chico Xavier —
ninguém que pregasse invasão de igreja, depredação de terreiro, abrisse
franquia de templos caça-níqueis. Gerou Gonzagão, Elomar, Lia de Itamaracá,
Dona Edite do Prato, Dona Onete, Dona Ivone Lara. Das raízes desse Brasil
nasceram a Tropicália, o Clube da Esquina, o Mangue Beat, o Pessoal do Ceará. A
valsa londrina e a vanguarda de Arrigo Barnabé, a canção pelotense de Vitor
Ramil, o chamamé de Helena Meirelles. É o Brasil dos sertões de Guimarães Rosa,
do Pantanal de Manoel de Barros, das Alagoas de Graciliano Ramos, do Pernambuco
de João Cabral, das Minas (as mais fundas) de Adélia Prado, de Drummond. Da
Brodowski de Portinari, da Japaratuba de Arthur Bispo do Rosário, da Aimorés de
Sebastião Salgado, da Caruaru de Mestre Vitalino.
É bem outro, das profundas, o Brasil deep
web, com fixações sexuais nunca dantes catalogadas — da mamadeira de piroca às
crianças desdentadas, do kit gay e — Arthur do Val não precisava ter ido à
Ucrânia — do clima que pinta com meninas refugiadas. E essa gente se melindra
com o Especial de Natal do Porta dos Fundos...
Eurídice Ferreira de Melo, lavradora do
Agreste, educou o filho para não roubar. Carl Hintze, imigrante alemão,
trabalhava para um jornal de militância na “defesa dos interesses dos homens
pretos”. O filho de dona Eurídice patrocinou o mensalão e o petrolão. O bisneto
de Herr Hintze avalia o peso de quilombolas em arrobas. Do Brasil profundo para
o mais raso em não mais que três gerações.
Há duas fotos emblemáticas na primeira
página do GLOBO desta quinta-feira, 20/10. Na primeira, uma criança impõe a mão
esquerda sobre a cabeça do candidato Lula, que —olhos fechados, braços em
levitação —parece em transe místico. Na segunda, a primeira-dama Michelle e a
ubíqua Damares oram, com semblante compungido. No Brasil profundo, a fé é
sagrada. Não se confunde teatro com religião.
"Um país arcaico, avesso à mudança, agarrado à propriedade privada, obcecado com segurança"
ResponderExcluirMais um articulista q vê simetria entre Lula e bolsonaro. Isso não é análise política, é romance, é ficção.
Pode-se votar em Lula, como eu, e reconhecer a pertinência da reflexão do comentarista. Isso não é 'análise política', é reflexão histórica. Como diria Marx, "Falta a esses senhores um pouco mais de dialética".
ResponderExcluirPode-se votar em Lula, como eu TB, e NÃO reconhecer a pertinência da reflexão HISTÓRICA do comentarista.
ExcluirO colunista escreveu muita bobagem... Negar que Lula é um homem do povo é absurdo! Lula também é (ou pode ser) populista, mas isto não impede que seja do povo. Bolsonaro é tanto simples quanto simplório, acho que o mesmo pode valer para Lula. Mas o pior é o tal "Brasil profundo", invenção onde o articulista exibiu toda a sua imaginação, além da sua incapacidade de diferenciar teoricamente o que seria e o que não seria, mostrando total falta de critérios para suas impressões ou opiniões. Ele (e qualquer um) tem direito de gostar ou desgostar das coisas que mencionou, mas não vejo sentido na sua tentativa de definir o que é/era ou não é/era o "Brasil profundo".
ResponderExcluirIsso!
ExcluirAcabei de pensar num Brasil de ''Chico Xavier e Irmã Dulce da Bahia'',uma grande coincidência o colunista citar os dois.
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