O Globo
Tirem os olhos do púlpito, das telas, dos
aplicativos de mensagens, das postagens
Na jornada de enfrentamento ao racismo, o
primeiro passo costuma ser o Teste do Pescoço. É metodologia tão singela quanto
perspicaz, capaz de jogar luz em apagamentos há muito naturalizados. Na
prática, ensina a enxergar o que, por ingenuidade, indiferença, manipulação ou
má-fé, jamais fora visto. A quem engatinha no letramento racial, experimente,
no clube gaúcho onde o cantor, compositor, instrumentista e ator Seu Jorge foi
injuriado na semana passada, girar o pescoço e observar a cor de quem se
diverte e de quem serve. No residencial de São Paulo de que o comediante Eddy
Jr. foi obrigado a se mudar, depois de atacado e ameaçado por dois moradores,
mãe e filho, repare o tom de pele de quem oprime e de quem é humilhado por
tentar entrar num elevador.
Num shopping em área de renda alta, dê uma olhada nas características étnico-raciais da clientela e dos seguranças, dos profissionais da limpeza, dos manobristas. Num hospital de ricos, verifique o tom de pele dos médicos, dos pacientes e das equipes de apoio. Tire os olhos do para-brisa e olhe para o lado, ao cruzar uma avenida na periferia ou passar por uma esquina do subúrbio ou de uma favela carioca. Qual a cor dos que ali vivem? Reflita sobre que serviços públicos o Estado não lhes oferece. Gire o pescoço e identifique quem são os ricos, quem são os pobres; quem se senta nas cadeiras do poder, quem está fora delas. Sem consultar qualquer estatística, terá uma experiência objetiva de percepção das desigualdades raciais no Brasil.
Na corrida eleitoral marcada por ações
desenhadas para invisibilizar os graves e urgentes problemas nacionais, pego
emprestado do movimento negro o Teste do Pescoço. Convém recomendar ao
eleitorado que deixe de mirar os falsos riscos, os inimigos imaginários, os
profetas de araque. É hora de brasileiras e brasileiros alvos do terrorismo
religioso, das políticas públicas oportunistas, das manobras orçamentárias
criminosas, da rede de notícias falsas, da violência política, do assédio
eleitoral por patrões pré-capitalistas, da retórica do medo, dos discursos de
ódio, virarem seus pescoços para a vida real.
Tirem os olhos do púlpito, das telas, dos
aplicativos de mensagens, das postagens. Virem o pescoço, mirem seus bolsos,
bolsas, carteiras, boletos, contas bancárias. Enquanto apontam demônios, o
salário mínimo caminha para o quarto ano seguido sem ganho real. Quando 2022
chegar ao fim, o piso terá o menor poder de compra desde a implantação do Plano
Real, há 28 anos. Enquanto a mulher do presidente ofende adversários políticos
com nome de doença letal, o ministro da Economia, Paulo Guedes, planeja sustar
a correção pela inflação do mínimo e dos benefícios previdenciários, como
aposentadorias e pensões. A proposta, antecipada na edição de ontem da Folha de
S.Paulo, de tão escabrosa, foi criticada por Henrique Meirelles, ex-ministro da
Fazenda e pai do teto de gastos, implantado no governo de Michel Temer.
— Ao propor uma reformulação do teto de
gastos alterando a forma de corrigir o salário mínimo e os benefícios
previdenciários, o plano fiscal do atual governo para um próximo mandato joga
nas costas da população a conta pelas medidas eleitoreiras deste ano —
esbravejou Meirelles numa rede social. Diante da repercussão negativa, o
Ministério da Economia divulgou nota negando a medida.
Gire o pescoço para as prateleiras dos
supermercados e bancas das feiras; nas ruas, há pessoas catando restos para aplacar
a fome. Repare que a inflação dos alimentos, de janeiro a setembro deste ano,
segundo o IBGE,
foi de 10,89%, mais que o dobro do índice oficial, o IPCA (4,09%). Neste ano, o
feijão-carioca já subiu 24%; o macarrão, 18%; a cebola, 63%; a farinha de
mandioca, 20%; farinha de trigo, 32%; o leite longa vida, 50%; o pão francês,
16%; as frutas, 18%; as hortaliças e os legumes, 14%; os ovos, 15%. Em 2022, a
cesta básica custa mais que no ano passado em todas as 17 capitais pesquisadas
mensalmente pelo Dieese; a mais cara, de São Paulo, passa de R$ 750. Os
combustíveis, gasolina e etanol, voltaram a subir no país, após 15 semanas de
queda.
Desvie o olhar da pregação de quem faz da igreja palanque. Repare como o divino se tornou secundário, em prol da sacralização de um homem com trajetória manchada por discursos violentos, ofensivos, depreciativos contra meninas e mulheres, negros e indígenas, LGBTs e estrangeiros. Desaprisione-se, olhe o céu, mire uma árvore, pense na floresta. Imagine a Amazônia, o Pantanal, o Cerrado, a Mata Atlântica. Lembre que a maior floresta tropical do mundo teve em setembro desmatamento recorde na série histórica iniciada em 2015 pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). O bioma perdeu em um mês 1.455 km², área superior à da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro (1.200 km²). Para enxergar o que falta, vire o pescoço.
Concordo cem por cento com a colunista.
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