Eu & Fim de Semana / Valor Econômico
Quando achamos que estamos chegando lá,
descobrimos que os protagonistas da formação do país são as vítimas de
contradições
Há algum tempo vi uma extensa e
interessante lista de 100 livros recomendados para se compreender o Brasil.
Resolvi fazer uma lista alternativa e menor de sugestões de leitura úteis para
essa compreensão, especificamente, do Brasil confuso desta hora de incertezas.
A lista mostra que o Brasil se revela no
seu avesso. Quando achamos que estamos chegando lá, descobrimos que os principais
protagonistas da formação do Brasil são as vítimas das contradições
historicamente constitutivas da nossa realidade. As que motivam a literatura do
deciframento.
Países compreensíveis são os nascidos de
uma história social e política convergente, de certa unidade de sentido e de
direção. O Brasil não é assim. É um país que parece buscar uma identidade, mas
nunca chega nela. Proclama-se um país de “Ordem e progresso”, mas não tem nem
ordem nem progresso no tanto que pode e no tanto que carece.
Um dos melhores livros para entender o Brasil é “O alienista”, de Machado de Assis. Esse é o meio livro de minhas recomendações porque quando o leitor acha que a história está acabando, descobre que está recomeçando.
Publicado em 1882, o conto não acaba nunca.
Simão Bacamarte ganhou vida, fugiu de dentro do livro para transformar o Brasil
numa Itaguaí continental. E saiu por aí apontando o dedo alienista a um e outro
para interná-lo no manicômio político e excludente em que muitos querem ver o
país transformado. Ou para se safarem com o país no bolso ou para se safarem
com o confinamento do povo num hospício invisível.
“Macunaíma”, de Mário de Andrade, é de
1928. O título é o nome do personagem, mestiçagem de gentes desencontradas e
colagem geográfica de distâncias encurtadas pelo imaginário da busca do
muiraquitã mítico e de pedra. Um amuleto que resolve os problemas insolúveis.
Mas nosso avesso não é apenas ficção.
Joaquim Nabuco, em “O abolicionismo”, de 1883, expõe a dialética de que a
realidade do Brasil é a unidade dos opostos, como no caso da escravidão:
“... a emancipação não significa tão
somente o termo da injustiça de que o escravo é mártir, mas também a eliminação
simultânea dos dois tipos contrários, e no fundo os mesmos: o escravo e o
senhor”.
A sociedade é relacional. O indivíduo é
apenas uma ficção jurídica. Somos filhos culturais e sociais de mediações, da
alteridade do outro. O nosso caráter está na contradição de sermos o outro e
acharmos que somos nós mesmos.
Em 1897, Euclides da Cunha, em “Canudos - Diário
de uma expedição”, supõe que o conflito era o de uma população camponesa
monarquista alçada contra a República. Não o era. A monarquia do sertão era
religiosa, a do Divino Espírito Santo, de gente que sofria o pavor do fim do
milênio e se refugiara de satanás no povoado santo de Canudos à espera do fim.
Em “Os sertões”, de 1902, uma de nossas
primeiras obras de ciências sociais, Euclides da Cunha consertou a
interpretação fantasiosa do livro anterior. O Brasil insurgente era um Brasil
abandonado, em que o próprio Estado tratava o povo como inimigo, na falta de
outro.
A Canudos de pau a pique foi destruída a
tiros de canhão. O crime oficial continuaria na Guerra do Contestado e se
repetiria em outros episódios de incitação e criminalização do povo para combatê-lo
e aprisioná-lo no imaginário de quartel ou eliminá-lo.
Com “Os índios e a civilização”, de 1970, o
antropólogo Darcy Ribeiro reconstitui a dolorosa história do desencontro
brasileiro. O desenraizado brasileiro do encontro com os índios, que são os
brasileiros mais autênticos, foi o pior deles, o menos humano, o que apresentou
a suas vítimas o Brasil que se oculta e é ocultado às leis, ao Estado e ao
povo, o que dissemina doenças para contaminar e matar, o que violenta, mata e
destrói as condições de vida dos povos originários.
As culturas dos povos indígenas prescrevem
a classificação dos seres, em grupos, metades, parentes. A aparição dos brancos
no meio deles se deu por meio da disseminação das doenças contagiosas e da
morte. Os xavantes classificaram os brancos na família da onça, o único animal
que mata por matar.
Ignácio de Loyola Brandão acaba de publicar
“Deus, o que quer de nós?”. De cujos personagens o Desatinado se apoderou. Nós
o recriamos, e ele se apossou de nós, de nossa condição de protagonistas do
nosso destino. Ele simboliza o que já não sabemos que somos, porque já não
sabemos ser. Ele é a volta do que não vai. Ele paralisou o tempo para
imobilizar-nos.
Esse é o cerne do enredo, o de uma
sociedade cuja história não é histórica, que vai na direção contrária de para
onde pode ir, uma sociedade que se nega e se perde nos absurdos da vida
cotidiana reengendrada. Nela os mortos ainda acham que estão vivos.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "As duas mortes de Francisca Júlia A Semana de Arte Moderna antes da semana" (Editora Unesp, 2022).
Ótimo texto !
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