terça-feira, 4 de outubro de 2022

Luiz Gonzaga Belluzzo* - Peripécias do dólar e angústias nacionais

Valor Econômico

Os governos estão intervindo para resistir à depreciação de suas moedas. Já assistimos a esse filme

A The Economist anuncia: “O dólar está esmagando todos os parceiros. O greenback subiu 5,5% desde meados de agosto, em parte porque o Fed está elevando as taxas, mas também porque os investidores estão se afastando do risco... Os governos estão intervindo para resistir à depreciação de suas moedas”.

Já assistimos a esse filme. Vamos começar tropeçando com a crise da dívida do Terceiro Mundo em 1982 - aquela que o sábio Walter Wriston, então presidente do Citi, garantia que não podia acontecer. Esse tropeção foi desferido pela elevação dos juros, decidida por Paul Volcker em 1979. O FMI e o governo Reagan salvaram os credores de maior porte. Deixaram a quebradeira para a periferia imprudente. O Brasil puxou a fila.

Em 1986, as Saving and Loans, outrora circunscritas às hipotecas, aproveitaram a desregulamentação para curtir amor em terra estranha, como o inesquecível Osmar Santos, um clássico da narração esportiva, qualificava a situação do jogador pilhado em impedimento. As associações de poupança e empréstimo lambuzaram-se na especulação com títulos de alto risco. Quebraram. Foram socorridas pelo papai Estado.

Em 1987, o Federal Reserve impediu a propagação do crash da Bolsa de Nova York com uma injeção generosa de liquidez. O ‘program trading’ havia derramado nos mercados um caudal de ordens de venda, aparentemente desencadeadas por declarações infelizes sobre o curso do dólar pelo então secretário do Tesouro dos Estados Unidos, o arrogante e inoportuno James Baker.

No Acordo do Louvre, também em 1987, os Estados Unidos impuseram ao Japão a valorização do yen, a endaka. Sob pressão de Tio Sam, o país entrou na farra da desregulamentação financeira. Saboreou inicialmente as delícias de uma bolha imobiliária e outra no mercado de ações. A curtição durou pouco. Em 1989, os preços dos imóveis e das ações despencaram e deixaram os bancos japoneses encalacrados em créditos irrecuperáveis. O Bank of Japan cortou os juros a zero. Não adiantou. Os japoneses curtiram dez anos de estagnação.

Logo depois, os mercados castigaram a libra valorizada com um ataque comandado pelo filósofo-especulador George Soros. Não satisfeita, a turma da bufunfa, em 1993, cismou com a serpente monetária europeia: castigou a lira italiana e a peseta espanhola.

Na sequência, nos idos de 1994, Alan Greenspan surpreendeu o aquecido mercado global de bônus com uma elevação da policy rate. O grosso das perdas atingiu, mais uma vez, um emergente descuidado: no fim de 1994, o mundo presenciou atônito uma nova derrocada do peso mexicano. Ação pronta do FMI e do Tesouro salvou os bancos americanos carregados de Tesobonos (títulos do governo mexicano denominados em dólares). O socorro de Tio Sam aos bancos de seu país impediu uma nova moratória no território abaixo do Rio Grande.

Depois, uma sequência trágica: a crise asiática iniciada na Tailândia, em 1997, contaminou os incautos. Em 1998, o Brasil e a Rússia foram tragados no redemoinho da finança desregulada. Ainda em 1998, o hedge fund administrado pelos ganhadores do Prêmio Nobel Merton e Scholes entrou na rota da quebra. Os sabidos apostaram na convergência entre os preços dos bônus do governo dos EUA e papéis semelhantes do governo russo. Como o movimento esperado de preços não se verificou, os cientistas fogueteiros, acossados pelas chamadas de margem, tiveram de botar grana no negócio à medida que os preços dos ativos se afastavam da direção imaginada pelos jogadores. Para cumprir essa obrigação, os bacanas foram forçados a "buscar liquidez" mediante a venda de ativos, provocando uma queda de seus preços. O Fed teve de intervir, obrigando os bancos financiadores a sustentar a liquidez dos especuladores, com o propósito de evitar uma crise sistêmica.

A euforia com as ações da nova economia das dotcom dos anos 90 vai à breca em 2000, mas o maníaco soprador de bolhas, Alan Greenspan, baixa rapidamente o juro básico. Com isso, dá curso à super-bolha de ativos, agora sob o patrocínio dos empréstimos hipotecários e da sanha dos consumidores. Joga às alturas os preços das residências.

No ciclo recente encerrado em 2008, o circuito crédito-riqueza-consumo teve como “fundamento” a valorização dos imóveis residenciais e terminou na superalavancagem dos novos instrumentos financeiros. “Originados” na concessão de empréstimos hipotecários, os ativos, filhotes da criatividade dos mercados, eram “carregados” pelos fundos e bancos-sombra, avaliados pelas agências de classificação de risco e garantidos pelas seguradoras de crédito. O maior peso da riqueza financeira na riqueza total foi acompanhado pela concentração crescente da massa de ativos mobiliários sob controle de poucos fundos mútuos, fundos de pensão e de hedge. Os administradores desses fundos ganharam poder na definição de estratégias de utilização da “poupança” e do crédito.

A abertura das contas de capital suscitou a disseminação dos regimes de taxas flutuantes e o crescimento dos instrumentos de hedge, diante da volatilidade das taxas de juro e câmbio. A “securitização” dos empréstimos bancários alimentou os mercados secundários. O uso dos derivativos impulsionou os contratos futuros de câmbio.

Isso, em vez de atenuar, ampliou as flutuações de preços e os riscos de liquidez nos mercados financeiros. As crises foram amplificadas pelas regras da marcação a mercado e pelas operações alavancadas que contemplam chamadas de margem. As quedas dos preços são acentuadas, porquanto aceleram as vendas dos ativos mais líquidos para cobrir as perdas. Quanto mais cai, mais afunda.

No topo da pirâmide da distribuição da riqueza e renda, os credores líquidos apropriam-se de frações cada vez mais gordas da valorização dos ativos financeiros. Os vencedores e perdedores dividem-se em duas categorias sociais: no topo os que, ao acumular capital fictício, gozam de “tempo livre” e do “consumo de luxo”. Na rabeira os que se tornam dependentes crônicos do endividamento, permanentemente ameaçados pelo desemprego e, portanto, obrigados a competir desesperadamente pela sobrevivência.

*Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp e professor emérito da Universidade Federal de Goiás.

 

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