O Globo
O ultradireitismo é fabricado por Bolsonaro
com falsas questões, e a economia melhora, porém não há alivio para os mais
pobres do país
Há duas teses circulando: o brasileiro é
mais conservador do que se imaginava e a economia está melhorando, o que levará
a mais votos para Bolsonaro. Será? Minha convicção é que há um
ultraconservadorismo fabricado pela extrema-direita que sempre cresceu
inventando falsas questões. A economia tem sim indicadores melhores, mas a
sensação de conforto econômico não é uniforme nem disseminada. A maioria dos
eleitores de Lula e de Bolsonaro é contra a liberação do aborto e contra a
facilidade na compra de armas, segundo a última pesquisa Quaest, e isso mostra
que há menos diferença entre eles do que se imagina.
O brasileiro pode não ser majoritariamente liberal no comportamento, mas essa não é uma agenda pela qual ele estaria disposto a hipotecar o futuro do país e romper laços familiares, se não fosse a manipulação a que está submetido pelo governo Bolsonaro. É parte do jogo da extrema-direita criar falsos conflitos para mobilizar multidões. E isso se faz criando uma grande mentira e repetindo-a insistentemente. Por exemplo, a de que o adversário político teria um plano de, nas escolas, impor a sexualização precoce às crianças e induzi-las à troca de gênero. Chamaram a isso “ideologia de gênero” e criaram a mentira do “kit gay”. Isso foi parte da vitória de 2018 e foi reativada agora para socorrer o candidato que está perdendo as eleições. No QAnon americano foi criada a visão conspiratória de que os adversários de Trump faziam parte de uma organização de pedófilos. É isso que Damares tenta repetir aqui. É mentira criminosa para ter efeitos eleitorais.
Há um conservadorismo que é tão natural
quanto o progressismo. São visões diferentes de mundo. A pessoa pode estar mais
ou menos aberta às mudanças comportamentais. Mas há um reacionarismo, e esse
precisa ser combatido, que é cevado pelo grupo que está agora no poder. Um
exemplo é o papel da mulher na sociedade. Há quem se incomode com o avanço
feminino. Mas a extrema-direita defende o que Michelle Bolsonaro descreveu.
“Ser mãe, esposa e ajudadora do marido é o papel da mulher.” Isso é uma
velharia que evidentemente não é a ideia majoritária no país.
Outro ponto é a economia. Ela sempre foi
uma indutora do voto. Quando vai mal, o governante vai mal na avaliação e na
intenção de voto. E vice-versa. Ela começou a melhorar, com queda da inflação,
redução do desemprego e aumento da atividade. Em parte, isso foi fabricado por
estímulos e subsídios, mas seu efeito tem limites. Veja-se a renda. O
rendimento médio em agosto foi 3,1% maior do que o do trimestre terminado em
maio. Porém o rendimento médio real está 10% abaixo de agosto de 2020 e é o
mais baixo para meses de agosto desde 2012. A inflação, como mostrou a
coluna de Alvaro Gribel na quarta-feira, caiu, no acumulado do ano, de
5,49% para 4,09% com as três deflações, mas a alta dos alimentos ainda está em
10,89%. Enquanto a gasolina teve queda de 26% no ano, o leite longa vida ainda
tem alta de 50%. O governo está derramando dinheiro público para reduzir o
preço da gasolina e poder repetir isso em cada palanque. Mas a população de
renda mais baixa não sentiu alívio. O Ipespe de sexta-feira trouxe que 67% dos
entrevistados disseram que os preços aumentaram ou aumentaram muito. A
dívida das famílias vem batendo recorde e já ultrapassa metade da renda anual.
O pior nível desde 2005. Mesmo se descontarmos os financiamentos imobiliários,
as famílias gastam 26,6% da sua renda mensal pagando dívidas com instituições
financeiras.
O Brasil não é um país tão polarizado
assim. A Quaest perguntou se as compras de armas devem ser facilitadas.
Disseram não 90% dos eleitores de Lula e 52% dos eleitores de Bolsonaro. O
aborto deve ser legalizado? Disseram não 87% dos eleitores de Bolsonaro e 62%
dos eleitores de Lula. Discordam da legalização do aborto 73% dos católicos e
82% dos evangélicos. Aliás, 68% dos evangélicos são contra também a liberação
de armas e 75% dos católicos. As cotas raciais são aprovadas por 49% dos
bolsonaristas, 61% dos lulistas, 55% dos católicos e 53% dos evangélicos.
Nossas divisões existem, claro, mas o grau
de conflito atual foi exacerbado por Bolsonaro, porque ele governou estimulando
exatamente isso. Quanto à economia, ela continua sendo importante na hora do
voto, mas a família sabe no seu orçamento o que há de real ou artificial em
cada indicador.
Boa análise.
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