domingo, 16 de outubro de 2022

Míriam Leitão - O real no meio das dissonâncias

O Globo

O ultradireitismo é fabricado por Bolsonaro com falsas questões, e a economia melhora, porém não há alivio para os mais pobres do país

Há duas teses circulando: o brasileiro é mais conservador do que se imaginava e a economia está melhorando, o que levará a mais votos para Bolsonaro. Será? Minha convicção é que há um ultraconservadorismo fabricado pela extrema-direita que sempre cresceu inventando falsas questões. A economia tem sim indicadores melhores, mas a sensação de conforto econômico não é uniforme nem disseminada. A maioria dos eleitores de Lula e de Bolsonaro é contra a liberação do aborto e contra a facilidade na compra de armas, segundo a última pesquisa Quaest, e isso mostra que há menos diferença entre eles do que se imagina.

O brasileiro pode não ser majoritariamente liberal no comportamento, mas essa não é uma agenda pela qual ele estaria disposto a hipotecar o futuro do país e romper laços familiares, se não fosse a manipulação a que está submetido pelo governo Bolsonaro. É parte do jogo da extrema-direita criar falsos conflitos para mobilizar multidões. E isso se faz criando uma grande mentira e repetindo-a insistentemente. Por exemplo, a de que o adversário político teria um plano de, nas escolas, impor a sexualização precoce às crianças e induzi-las à troca de gênero. Chamaram a isso “ideologia de gênero” e criaram a mentira do “kit gay”. Isso foi parte da vitória de 2018 e foi reativada agora para socorrer o candidato que está perdendo as eleições. No QAnon americano foi criada a visão conspiratória de que os adversários de Trump faziam parte de uma organização de pedófilos. É isso que Damares tenta repetir aqui. É mentira criminosa para ter efeitos eleitorais.

Há um conservadorismo que é tão natural quanto o progressismo. São visões diferentes de mundo. A pessoa pode estar mais ou menos aberta às mudanças comportamentais. Mas há um reacionarismo, e esse precisa ser combatido, que é cevado pelo grupo que está agora no poder. Um exemplo é o papel da mulher na sociedade. Há quem se incomode com o avanço feminino. Mas a extrema-direita defende o que Michelle Bolsonaro descreveu. “Ser mãe, esposa e ajudadora do marido é o papel da mulher.” Isso é uma velharia que evidentemente não é a ideia majoritária no país.

Outro ponto é a economia. Ela sempre foi uma indutora do voto. Quando vai mal, o governante vai mal na avaliação e na intenção de voto. E vice-versa. Ela começou a melhorar, com queda da inflação, redução do desemprego e aumento da atividade. Em parte, isso foi fabricado por estímulos e subsídios, mas seu efeito tem limites. Veja-se a renda. O rendimento médio em agosto foi 3,1% maior do que o do trimestre terminado em maio. Porém o rendimento médio real está 10% abaixo de agosto de 2020 e é o mais baixo para meses de agosto desde 2012. A inflação, como mostrou a coluna de Alvaro Gribel na quarta-feira, caiu, no acumulado do ano, de 5,49% para 4,09% com as três deflações, mas a alta dos alimentos ainda está em 10,89%. Enquanto a gasolina teve queda de 26% no ano, o leite longa vida ainda tem alta de 50%. O governo está derramando dinheiro público para reduzir o preço da gasolina e poder repetir isso em cada palanque. Mas a população de renda mais baixa não sentiu alívio. O Ipespe de sexta-feira trouxe que 67% dos entrevistados disseram que os preços aumentaram ou aumentaram muito. A dívida das famílias vem batendo recorde e já ultrapassa metade da renda anual. O pior nível desde 2005. Mesmo se descontarmos os financiamentos imobiliários, as famílias gastam 26,6% da sua renda mensal pagando dívidas com instituições financeiras.

O Brasil não é um país tão polarizado assim. A Quaest perguntou se as compras de armas devem ser facilitadas. Disseram não 90% dos eleitores de Lula e 52% dos eleitores de Bolsonaro. O aborto deve ser legalizado? Disseram não 87% dos eleitores de Bolsonaro e 62% dos eleitores de Lula. Discordam da legalização do aborto 73% dos católicos e 82% dos evangélicos. Aliás, 68% dos evangélicos são contra também a liberação de armas e 75% dos católicos. As cotas raciais são aprovadas por 49% dos bolsonaristas, 61% dos lulistas, 55% dos católicos e 53% dos evangélicos.

Nossas divisões existem, claro, mas o grau de conflito atual foi exacerbado por Bolsonaro, porque ele governou estimulando exatamente isso. Quanto à economia, ela continua sendo importante na hora do voto, mas a família sabe no seu orçamento o que há de real ou artificial em cada indicador.

 

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

Boa análise.