domingo, 9 de outubro de 2022

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

Editoriais / Opiniões 

Lula tem de explicar o que entende por ‘reindustrialização’

O Globo

Essa foi uma de suas raras propostas econômicas na campanha, mas o histórico petista recomenda ceticismo

Na visita que fez à Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp) no início da campanha, o candidato petista Luiz Inácio Lula da Silva falou o que a plateia queria ouvir: anunciou a “reindustrialização” do país como uma das plataformas de seu governo. Como foi uma das raras ideias econômicas concretas que aventou ao longo de toda a campanha, torna-se essencial entender o que o líder nas pesquisas de opinião entende por isso.

O Brasil tem longa tradição de subsídios e programas protecionistas para indústrias “estratégicas” ou “nascentes”. Os gastos se perpetuam, a proteção não as expõe à competição e eterniza as ineficiências, cujo custo é pago pelo consumidor e pela sociedade. O protecionismo é a receita para emperrar o principal motor do crescimento saudável: a produtividade. São tantas as iniciativas do tipo no país, que não é coincidência a produtividade brasileira estar estagnada há décadas.

Os defensores dessa escola de pensamento poderão alegar agora que os efeitos da pandemia e da guerra na Ucrânia nas cadeias globais de suprimento aconselham os países a produzir o máximo possível internamente, de modo a blindar-se de choques externos. Fala-se muito em “desglobalização”, mas isso não pode significar políticas autárquicas e dirigistas para impor a produção local a qualquer custo.

Em entrevista ao GLOBO, o economista-chefe da petroleira norueguesa Equinor, Eirik Waerness, citou a dependência global de semicondutores produzidos na Ásia (90% dos chips mais avançados são fabricados numa das regiões mais sensíveis do planeta, Taiwan). Os lockdowns na China quebraram as cadeias de suprimentos de microprocessadores algumas vezes. A guerra na Ucrânia também tem afetado montadoras de carros elétricos.

A revisão dessas redes de comércio parece inevitável. Uma alternativa é encontrar fornecedores geograficamente mais próximos. É possível que o Brasil possa aproveitar as oportunidades oferecidas pelo redesenho do comércio global, como tem se aproveitado do conflito na Ucrânia para ampliar a venda de grãos. Mas não pode abrir mão de boas práticas para ganhos de eficiência e redução de custos.

Há motivos para ceticismo diante do histórico petista. Em termos de “reindustrialização”, os governos Lula e Dilma Rousseff trouxeram a experiência funesta de forçar a produção interna de sondas de perfuração e navios para explorar o óleo do pré-sal. Foram gastos bilhões em subsídios. A aventura resultou em prejuízos bilionários e num gigantesco esquema de corrupção.

Outra das poucas propostas econômicas concretas de Lula é usar bancos públicos para financiar empresas. A primeira ideia que vem à mente é o famigerado programa de “campeões nacionais” lançado por ele e mantido por Dilma. A carteira de empréstimos do BNDES chegou a US$ 200 bilhões. Foram agraciados em operações subsidiadas pelo Tesouro grupos próximos ao governo, que se internacionalizaram, passaram a pagar gordos dividendos a seus donos e propinas ao PT.

O Lula III, pelo que se depreende do que tem dito, usaria o BNDES para apoiar pequenas e médias empresas, que teriam um ministério exclusivo. Elas empregam grande contingente de mão de obra, mas só isso não justifica planos mirabolantes sem base em sólidos fundamentos técnicos. É outra ideia que Lula precisa detalhar, assim como seu programa para a indústria.

Congresso do Partido Comunista não trará resposta a desafios da China

O Globo

Ambiente mais autoritário põe em risco decisões críticas sobre crise na economia, Taiwan e Rússia

Começa hoje em Pequim o 20º Congresso do Partido Comunista da China, realizado a cada cinco anos. Como nos anteriores, é tido como certo que o encontro não será palco de grandes debates. As decisões já foram todas tomadas com antecedência. O papel dos 3 mil delegados será apenas de figurantes. Toda a coreografia buscará exibir poder e união. Na edição deste ano, porém, são esperados anúncios inéditos de extrema relevância.

Quebrando a tradição das últimas décadas, o líder e secretário-geral Xi Jinping provavelmente receberá um terceiro mandato de cinco anos, que poderá abrir caminho para que ele se mantenha no poder indefinidamente. Não está descartado que seja agraciado com o título simbólico de presidente do partido, cargo ocupado por Mao Tsé-Tung e abolido poucos anos depois de sua morte.

Nos próximos dias, governos de diferentes países estarão atentos, sobretudo aos nomes que serão promovidos às altas instâncias de poder. Xi sempre deu preferência ao grupo de aliados da época em que atuava nas províncias e a tecnocratas do setor de defesa, tendo como régua a fidelidade, não a capacidade profissional.

Mantido esse padrão, aumentarão as chances de a China ter mais dificuldades para enfrentar desafios que vão do imbróglio envolvendo Taiwan à crise no setor imobiliário. As melhores soluções costumam aparecer nos ambientes em que não há medo do contraditório. O confronto de ideias entre especialistas é chave para elevar as chances de sucesso de uma decisão. Na China de Xi, essa prática tem perdido espaço.

Sempre em busca de preservar o poder, a elite chinesa é obcecada com o esfacelamento da União Soviética. Na década de 1990, líderes como Jiang Zemin permitiram maior abertura ao debate e mais liberdade para a imprensa. A ideia era que o arejamento do regime permitiria ajustes para evitar o destino soviético. Xi e seus apoiadores chegaram ao poder há dez anos com a visão oposta. Para eles, a glasnost de Mikhail Gorbachev foi a causa da derrocada da URSS. Prevendo tempos mais difíceis e críticas mais contundentes, endureceram o regime. A liderança coletiva deu lugar à centralização do poder. Como mostrará a coroação de Xi, essa é a ideia que ainda prevalece.

Na economia, a China provavelmente continuará a privilegiar o setor público. Embora o setor privado represente mais da metade da produção e seja responsável por nove entre dez novos postos de trabalho, as estatais têm preferência na concessão de crédito. Na área externa, os embates com os Estados Unidos prosseguirão, assim como o vínculo com a Rússia.

Ao Brasil, cabe seguir de perto o que acontece no maior destino das nossas exportações e maior origem das nossas importações. Além da importância na troca de mercadorias, a China é fonte de investimentos diretos e de novas tecnologias. Isso exige pragmatismo em qualquer decisão brasileira sobre o reino de Xi.

É a economia, Lula

Folha de S. Paulo

Candidato oposicionista está obrigado a dizer o que pretende mudar ou preservar

Ainda líder de uma corrida presidencial que se tornou mais acirrada e complexa, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) insiste na soberba de amparar sua postulação eleitoral apenas na vasta rejeição popular a seu adversário e incumbente, Jair Bolsonaro (PL).

O ex-presidente parece esperar que o retorno ao Planalto se dê por mera gravidade, ou pelo reconhecimento de feitos passados. Ou, ainda, porque os eleitores nada mais teriam a perder e estariam propensos a endossar qualquer alternativa ao quadro atual.

Os resultados do primeiro turno deveriam ter bastado para que Lula descesse desse pedestal. Milhões de votos demonstraram ali que os dispostos a reconduzir Bolsonaro e aliados —ou a evitar novo mandato petista— estão longe de se limitar à minoria que partilha de teses autoritárias e delírios conspiratórios.

A despeito de dificuldades, o panorama econômico, decisivo em qualquer eleição, não corresponde a um cenário de terra arrasada. O aumento do otimismo com o futuro imediato, cumpre recordar, já era detectado pelo Datafolha antes da abertura das urnas.

A inflação que aflige pobres e remediados começou a ser contida. O emprego avança com força neste ano. Trabalhadores que obtiveram vagas e empresários que contrataram querem saber o que lhes aguarda.

É um acinte, portanto, que Lula mantenha a opacidade quanto a seus planos e nomes para a gestão da economia —além de um erro estratégico que pode ter lhe custado a vitória no primeiro turno. Afinal, a pauta situacionista é, por definição, mais previsível.

É fundamental explicar como manter a recuperação da atividade e buscar o equilíbrio orçamentário, requisitos para a sustentação das políticas sociais. Na busca de votos ao centro e à direita, para além do apoio de formuladores do Plano Real e outros economistas de renome, Lula precisa romper com velhas doutrinas estatistas que, ao lado da corrupção, mancharam o legado das administrações petistas.

Promessas de mais gastos públicos e intervencionismo decerto podem agradar a ideólogos do partido e militantes, mas afugentam os estratos que têm os olhos voltados para a liberdade econômica, o empreendedorismo e a contenção da carga de impostos. Já passa da hora de reconhecer que a agenda liberal dos últimos anos trouxe avanços duradouros.

Em sua primeira campanha vitoriosa ao Planalto, duas décadas atrás, o petista acertou ao assumir, em carta pública, compromisso com a responsabilidade fiscal e o respeito aos contratos.

A relativa calmaria financeira de agora não exime Lula de apresentar seus planos e as pessoas que terão a responsabilidade de levá-los adiante. Ao contrário, é o candidato oposicionista que está obrigado a dizer o que pretende mudar ou preservar na economia.

Mais parcimônia, TSE

Folha de S. Paulo

Combate a fake news precisa de autocontenção, sob pena de afetar liberdades

Avestruz ou escorpião? Eis o dilema que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) enfrenta nestas eleições ao lidar com a enxurrada de fake news, baixarias e distorções propagadas pelas mais diversas candidaturas em todo o país.

Não é pequeno o desafio, nem de todo inédita a situação. Já se sabe, pela experiência internacional, que campanhas políticas nas redes sociais se constroem cada vez mais sobre a mentira e a desinformação; os últimos pleitos no Brasil descambaram pelo mesmo caminho.

A novidade deste ano é a presença de um presidente e candidato à reeleição que se orgulha de violar a institucionalidade democrática, patrocinar ataques contra os demais Poderes e ignorar compromissos com a verdade. Esperar que Jair Bolsonaro (PL) respeite as regras do jogo é exercício tão ingênuo quanto estéril.

Embora não seja o único a se valer de expedientes reprováveis nessa disputa, Bolsonaro se diferencia dos demais pela força do cargo que ocupa e pela ofensiva reiterada ao próprio sistema eleitoral, conduzida com ignorância, leviandade e nenhum traço de prova.

Foi em reação a esse cenário que o TSE, em 2021, modificou alguns artigos da resolução que versa sobre condutas ilícitas durante a campanha eleitoral. Entre outras alterações, a corte incluiu o veto a divulgação ou compartilhamento de fatos sabidamente inverídicos ou gravemente descontextualizados.

Tratava-se, a princípio, de iniciativa voltada à proteção do processo eleitoral, mas, aos poucos, seu escopo se ampliou. O ministro Alexandre de Moraes, presidente do tribunal, comandou a cristalização do novo entendimento.

"A questão não é só a inverdade, a mentira, a notícia falsa, a notícia fraudulenta, fake news, mas também a utilização, o desvirtuamento na finalidade da divulgação [de notícia]", disse durante uma sessão do TSE em setembro.

Entende-se o raciocínio; Moraes não quer ver colada no tribunal a imagem de um avestruz, que, numa leitura tradicional e distorcida, enfia a cabeça na terra para fugir do que acontece no entorno.

Seria de fato um problema, mas também a atitude oposta não deixa de sê-lo: ao expandir seu raio de atuação, a corte pode descair para a censura pura e simples. É esse o caso de sua interferência recente em conteúdos veiculados pela Gazeta do Povo e por O Antagonista.

Sai o avestruz, entra o escorpião da fábula, que lança a ferroada contra o sapo e condena ambos à morte enquanto atravessam um rio.

Encontrar um equilíbrio entre esses dois extremos é crucial para o TSE nesta disputa eleitoral, pois não há tribunal independente sem democracia, mas não há democracia sem liberdade de expressão.

O fantasma da pólio

Folha de S. Paulo

Queda alarmante da cobertura vacinal desde 2015 pode levar à volta da doença

São bastante preocupantes os resultados obtidos pela campanha nacional de imunização infantil contra a poliomielite, concluída no dia 30 de setembro.

Iniciada em 9 de agosto, a ação do Ministério da Saúde estava programada para terminar um mês depois. Mas os baixos índices de imunização levaram a pasta a prorrogá-la por mais três semanas.

Mesmo assim, a iniciativa só atingiu pouco mais da metade das crianças menores de 5 anos. Trata-se, portanto, de índice muito abaixo da meta de 95% preconizada pelos epidemiologistas e crucial para impedir a circulação da pólio.

O número geral esconde um quadro regional heterogêneo que indica onde estão os principais gargalos do país. A Paraíba alcançou 86% do público-alvo, por exemplo, mas Roraima chegou a somente 23%.

Provocada por um vírus que se aloja no sistema nervoso central, a poliomielite é uma doença altamente contagiosa, que nas suas formas mais graves causa a paralisia permanente dos membros.

O último caso registrado no Brasil remonta a 1989, e em 1994 a Organização Mundial da Saúde conferiu ao país o certificado de erradicação da moléstia. Porém o vírus permanece em circulação na Nigéria, no Paquistão e no Afeganistão.

A única maneira de evitar a volta da pólio no Brasil é manter elevado o percentual de crianças imunizadas. Acontece que, desde 2015, esse número só regride por aqui.

Naquele ano, a taxa se encontrava no sólido patamar de 98,2%. Caiu no ano seguinte para 84,4% e, em 2020, minguou a 75,9%. Em 2021, no pior ano da pandemia, desabou para alarmantes 67%.

Não à toa, o Brasil foi incluído pela Organização Pan-Americana de Saúde —ao lado de República Dominicana, Haiti e Peru— no rol de países que correm risco muito alto de reintrodução da poliomielite.

Especialistas veem uma conjunção de fatores por trás do declínio: do relaxamento da população diante da ausência de casos até a complexidade do calendário vacinal, para não falar da possível influência do negacionismo antivax.

Diante disso, compete ao Estado, em especial o governo federal, no mínimo divulgar de modo amplo e convincente, a pais e responsáveis, informações a respeito da imunização. Talvez a mensagem mais relevante neste momento seja a de que, apesar do fim da campanha nacional, a vacinação contra a pólio segue ocorrendo em todos os postos de saúde do país.

Desconfiança endêmica

O Estado de S. Paulo

Descrédito generalizado do poder público e da imprensa, dois pilares da democracia, conclama ambos a revigorar as fontes de sua credibilidade – competência e valores – com humildade

O mais recente Barômetro de Confiança do Grupo Edelman, que mede anualmente índices de confiança, informa que “a desconfiança é agora a emoção padrão da sociedade”. Há um “colapso da confiança nas democracias”: menos da metade da população mundial acredita nas instituições públicas; mesmo os povos desenvolvidos creem que suas famílias estarão piores em cinco anos. Ansiedades sociais estão se tornando agudas: 85% se preocupam com a perda do emprego e 75%, com as mudanças climáticas. A preocupação com a desinformação como arma atingiu um pico histórico de 76%.

Pior: o ciclo de desconfiança parece abastecido justamente por duas instituições fundantes da democracia: o governo eleito e a imprensa independente. Um em cada dois entrevistados vê o governo e a mídia como forças divisivas. Seja percepção ou realidade, esse descrédito conclama todos a um amplo e profundo exame de consciência.

Em um mundo de polarizações e redes sociais, uma nova geração de jornalistas vem questionando o ideal da objetividade em nome de uma certa “clareza moral”. “Os repórteres deveriam focar em ser justos e contar a verdade”, resumiu o articulista Wesley Lowery. A princípio, isso parece não tanto um abandono da objetividade, mas a sua apoteose. É fácil ver, porém, que, se essa “clareza moral” se degenera em moralismo e subjetivismo, antes de gerar empatia com o público e engajá-lo, acabará por aliená-lo ainda mais. Quando se demitiu do New York Times no ano passado, a editora Bari Weiss ecoou a descrença de muita gente na mídia ao criticar o que lhe parece o novo consenso no jornal: “Que a verdade não é um processo de descoberta coletiva, mas uma ortodoxia já conhecida por uns poucos iluminados cuja tarefa é comunicá-la a todo o resto”.

Algo análogo se passa na política. Para recobrar a credibilidade, os governos precisam entregar mais bem-estar social, crescimento inclusivo, liberdades pessoais, acesso à justiça e à paz. Mas tão importantes quanto esses resultados são seus processos. É crucial expandir mecanismos que removam barreiras à representação coletiva, deem mais voz aos cidadãos e tornem o Estado mais responsivo. Ademais, muitas pessoas percebem seus governos não só como distantes, mas corruptos e capturados por interesses privados. Por isso, eles precisam distribuir a elas mais instrumentos de responsabilização e transparência. Participação, transparência e confiança sempre se reforçam mutuamente.

Para os Três Poderes ou para o Quarto (a mídia) não se trata de reinventar a roda, mas de revigorar as fontes de toda credibilidade: competência e integridade. Os cidadãos confiam na imprensa quando sentem que ela está lhes contando a verdade, e confiam no Estado quando sentem que ele está lhes provendo a justiça. Mas verdade e justiça são realizações coletivas. Leitores e eleitores precisam se perceber e, sobretudo, ser partícipes nesses processos. Por isso, a pedra angular para jornalistas e estadistas reconstruírem sua credibilidade é a mesma e uma só: humildade.

A confiança é vital para o desenvolvimento da sociedade. A confiança entre os cidadãos permite que se compreendam e cooperem. A confiança permite que o poder público planeje políticas e entregue serviços. Num ecossistema confiável, investidores investem e consumidores consomem, gerando trabalho e prosperidade. Já a desconfiança leva à desintegração social, ao “cada um por si”: cada qual buscando a felicidade por si só para si só. Mas isso é ilusão. O inverso do “Um por todos, todos por um” é o reverso da fortuna.

“Há muitos membros, mas um só corpo. O olho não pode dizer à mão: ‘Não preciso de você’; nem a cabeça aos pés: ‘Não preciso de vocês’. Ao contrário, os membros que parecem mais baixos são indispensáveis”, advertia o apóstolo Paulo. “Deus dispôs o corpo dando mais dignidade aos membros que não a tinham, para que não haja dissensões no corpo e os membros tenham o mesmo cuidado uns pelos outros. Se um sofre, todos padecem com ele; e se um é revigorado, todos se regozijam com ele.” Assim é em uma sociedade sadia.

O triunfo dos caquistocratas

O Estado de S. Paulo

Por razões ainda a serem estudadas, eleitores consagraram nas urnas Pazuello, Salles e Damares, que transformaram seu péssimo desempenho como ministros em capital eleitoral

Jair Bolsonaro, como se sabe, instalou no País uma caquistocracia – o governo dos menos qualificados, em grego –, mas uma parcela expressiva dos eleitores, em vez de castigar nas urnas os representantes desse regime destrutivo, premiou alguns de seus melhores espécimes. Por razões que ainda precisam ser estudadas, os ex-ministros Eduardo Pazuello, da Saúde, Ricardo Salles, do Meio Ambiente, e Damares Alves, da Mulher, Família e Direitos Humanos, além de Mário Frias, ex-secretário especial de Cultura, foram eleitos para o Congresso (Pazuello, Salles e Frias para a Câmara, e Damares para o Senado) a despeito da razia que cada um promoveu nas áreas que estiveram sob sua gestão.

É evidente que os quatro não foram eleitos pelos supostos bons serviços que teriam prestado ao País, mas sim recompensados nas urnas pela fidelidade canina ao presidente Bolsonaro. Ora, trata-se de um ex-ministro da Saúde que não teve a menor preocupação com o bem-estar de seus concidadãos; de um ex-ministro do Meio Ambiente que se pôs ao lado de desmatadores e garimpeiros ilegais; de um ex-secretário de Cultura mais preocupado com o armamento da população do que com políticas de fomento às artes; e de uma ex-ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos que demonstrou ter uma visão muito distorcida sobre o lugar da mulher na sociedade moderna, não concebe a existência de famílias fora do modelo tradicional e pensa que alguns humanos têm mais direitos do que outros.

Eleições para cargos proporcionais dão azo ao triunfo de toda sorte de excentricidades. No entanto, o Brasil terá dado um passo muito importante em direção ao desenvolvimento humano, político e econômico quando comportamentos absurdos passarem a merecer somente o repúdio dos cidadãos, não seus votos.

Em particular, a eleição de Pazuello, ministro que mais tempo esteve à frente do Ministério da Saúde durante a pandemia de covid-19, soa como pilhéria sobre os cadáveres dos mais de 680 mil brasileiros que morreram ao longo da crise sanitária. Sua longevidade no cargo não se deveu a outro fator que não a subserviência absoluta a Bolsonaro. “Um manda e outro obedece, é simples assim”, disse Pazuello em outubro de 2020, ao recuar da compra de vacinas por ordem direta do chefe.

Ninguém de boa-fé haveria de imputar a Bolsonaro ou a membros de seu governo a responsabilidade total pelos desdobramentos trágicos da pandemia no País. Contudo, a desídia e a insensibilidade da dupla Bolsonaro-Pazuello foram, sim, responsáveis por transformar uma crise sanitária que já seria muito grave por si só no horror inominável que custou a vida de tantos milhares de brasileiros. É estupefaciente notar que Bolsonaro foi o candidato à Presidência mais votado em Manaus (AM), com 53,5% dos votos válidos. Afinal, foi ali que, há não tanto tempo, dezenas de acometidos por covid-19 morreram em agonia afogados no seco pela demora do governo federal em enviar oxigênio para os hospitais da região.

O desgoverno Bolsonaro não se restringe, obviamente, à condução do País durante a pandemia. Políticas públicas nas áreas de saúde, educação e proteção ambiental foram dizimadas por interesses particulares e questões ideológicas que beiraram o delírio. Insere-se nesse contexto o ataque de Bolsonaro contra as vacinas. A bem da verdade, o presidente não inaugurou o movimento antivacina no Brasil, mas seu discurso anticientífico o agravou profundamente. Nunca as taxas de cobertura vacinal contra sarampo e poliomielite, por exemplo, foram tão baixas como agora.

Mas nem tudo é desalento. Figuras ligadas ao bolsonarismo tiveram desempenho pífio nas urnas, como Fabrício Queiroz, notório faz-tudo do clã Bolsonaro; Frederick Wasseff, rábula dos Bolsonaros; Abraham Weintraub, o mais exótico ministro da Educação deste governo; Nise Yamaguchi e Mayra Pinheiro, candidatas da “bancada da cloroquina”; e Sérgio Camargo, o presidente da Fundação Palmares que hostilizava negros.

Ou seja, os eleitores indicaram que até para aberrações é preciso haver algum limite.

O pedregoso caminho do Censo

O Estado de S. Paulo

Depois de inúmeros obstáculos para sua realização, pesquisa do IBGE, essencial para o País, teve sua conclusão adiada

Parecem não ter fim as dificuldades para a realização do Censo Demográfico 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), cujo término foi adiado de outubro para dezembro. O principal levantamento estatístico nacional, imprescindível para o planejamento de políticas públicas e para o rateio de recursos entre Estados e municípios, acumula tropeços de todo tipo. A cada novo atraso, infelizmente, o País inteiro sai perdendo.

Um dado resume a grandiosidade e a importância do Censo: o levantamento é realizado apenas uma vez por década. A partir daí, suas informações servem de base para o desenho das amostras das demais pesquisas que, ano após ano, vão atualizando o retrato do País. Outra característica única do Censo é o detalhamento das estatísticas em nível municipal, referência para identificar, por exemplo, onde há mais crianças sem creche. Inclusive em bairros e regiões específicas, o que se mostra essencial em grandes cidades como São Paulo e Rio de Janeiro.

O atual Censo deveria ter sido realizado em 2020, mas foi adiado em razão da pandemia de covid-19 – uma decisão sensata. Mas a verdadeira saga começou em 2021, expondo, uma vez mais, o aparente desprezo do governo do presidente Jair Bolsonaro por tudo que se relaciona à ciência, à pesquisa e ao planejamento de políticas públicas a partir de evidências. 

O governo simplesmente não destinou recursos para o Censo em 2021, o que levou o governo do Maranhão a acionar o Supremo Tribunal Federal (STF). Como se sabe, o Censo orienta os repasses dos Fundos de Participação dos Estados (FPE) e dos Municípios (FPM). Após o Supremo determinar que o levantamento ocorresse em 2022, o governo não alocou dinheiro suficiente − isso depois de já ter exigido que o IBGE enxugasse despesas com o levantamento. No fim de 2021, o IBGE precisou buscar apoio no Congresso Nacional para complementar as verbas.

A coleta de dados começou em 1.º de agosto. E aí surgiram muitas outras dificuldades. A começar por atrasos nos pagamentos aos recenseadores. O que dizer de uma administração federal capaz de atrasar a remuneração dos profissionais na linha de frente de um Censo iniciado já dois anos depois do prazo? Pois foi o que ocorreu, ensejando, claro, uma paralisação e a debandada de muitos recenseadores. A isso se soma a hostilidade de parte da população, que teme ou se recusa a responder às perguntas. 

Resultado: a coleta está atrasada e, por causa do ritmo bem mais lento do que em 2010, o prazo final teve que ser estendido até dezembro, o que pode até prejudicar a qualidade do levantamento, uma vez que as respostas têm como referência uma data específica e, quanto mais distante dessa data for a entrevista, menos precisas tendem a ser as respostas. Correndo para tentar reverter os prejuízos, o IBGE decidiu fazer uma campanha de conscientização sobre a importância do Censo em 18 capitais. Antes tarde do que nunca. Em tempos de desmoralização das informações de qualidade, é imperioso esclarecer os brasileiros sobre a relevância da pesquisa, para que todos colaborem.

 

2 comentários:

  1. "Lula tem de explicar o que entende por ‘reindustrialização"

    Reindustrialização é refazer o q o broxonaro destruiu - simples.

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  2. "Esperar que Jair Bolsonaro (PL) respeite as regras do jogo é exercício tão ingênuo quanto estéril"

    Em outras palavras, broxonaro é criminoso pois não respeita regras.

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