O Estado de S. Paulo
Esqueçamos de vez o ‘Brasil Grande
Potência’ – aquela que nos levou a perder a década de 1980 – e cuidemos da
vida
Mais uma década perdida nos levará a outras mais, isso é óbvio. Podíamos ter perdido a de 1980? Noves fora, penso que sim, pois, embora o general-presidente não pudesse ter previsto a guerra de 1976 no Oriente Médio e o abrupto impacto financeiro que ela teve sobre nós, não teríamos caído no despenhadeiro dos anos 80 se ele, em vez de tentar industrializar o Brasil “em marcha forçada”, tivesse dado ouvido a pessoas mais sensatas. Mário Henrique Simonsen, por exemplo, sabia que natura non facit saltus. A insistência na estratégia faraônica custou-nos um longo período de inanição econômica e desemprego furando o teto. Por sorte, dispúnhamos da inteligência de que precisávamos para brecar uma inflação de 33 anos, coisa de que já não podemos estar certos.
E a década de 2010, era evitável? Essa, com
certeza, não, por causa da profundeza dos pilares sobre os quais a assentamos
desde o princípio. As etapas de nossa descida morro abaixo podem ser facilmente
recapituladas. Começou com entendimentos não tão republicanos, como seria de
desejar, envolvendo uma fração infinitesimal do eleitorado brasileiro. Com uma
crise internacional batendo às portas e as compras chinesas dando sinais de
desaceleração, um seleto grupo formado por pessoas investidas em cargos públicos,
empreiteiros de altíssimo coturno e ao menos um dotado de excepcional talento
publicitário decidiram, recebendo em troca favores ainda não inteiramente
esclarecidos, que o mandato de 2011-2014 haveria de ficar nas mãos de Dilma
Rousseff e Guido Mantega.
Abstenhamo-nos de jogar toda a culpa na
pandemia, pois sabemos que a “nova matriz econômica” chegou bem antes dela.
Veio trazendo a maior recessão de nossa história e dispensando os préstimos de
milhões de trabalhadores. O impeachment da suprema mandatária, estilhaços da
Lava Jato, um sistema político esmigalhado e a substituição da civilidade pelo
esmurro generalizado, a partir da eleição de 2018, demonstram que o Brasil é
capaz de manter a democracia, mesmo sem a desejável galhardia.
Faremos bom uso da presente década? Pode
ser que sim, pode ser que não. Tendo a crer que sim, porque acredito piamente
que o medo e o bom senso se dão muito bem. Nem sempre, mas em geral se
entendem. Se um dia discernirmos o espectro da guerra civil, o mais provável é
que saudaremos com entusiasmo a chegada do juízo. Após meio século de vida
política, Lula parece ter adquirido algum. Formando um bom ministério, terá
condições de pacificar o País. E, se o fizer nos próximos quatro anos, a década
estará salva, pois não é crível que cometamos o disparate de repetir esse
enredo.
Mas certas hipóteses colaterais devem ser
examinadas. Sabemos todos que Lula venceu Bolsonaro por um fio de cabelo. Se
tivesse angariado, digamos, 70% dos votos válidos, o problema estaria
resolvido. Nem em seus piores pesadelos ele aceitaria ser visitado pelo
comandante-general Juan Domingo Perón. Com Bolsonaro, acontece o contrário. Se
tivesse tido só 30% dos votos, meteria a viola no saco e iria cuidar de sua
vida. Mas chegou quase ao empate. Nessa faixa, há lugar para muito
ressentimento e para as mais descabidas alucinações. Para piorar as coisas, uma
parcela de seus adeptos – entre os quais os caminhoneiros – o acoimará de
traidor se optar por sombra e água fresca. Se Lula não conseguir desarmar a bomba
do rancor com certa brevidade, o coquetel Bolsonaro + caminhoneiros + telefone
celular poderá se constituir até com certa facilidade: nitroglicerina pura.
A esta altura, os leitores com certeza
estarão me cobrando o que prometi no título deste artigo: o que poderemos fazer
para evitar uma terceira década perdida? À primeira vista, começamos mal. Lula
poderia ter dito qualquer coisa, menos que “equilíbrio fiscal causa sofrimento
às pessoas e impede as crianças de tomar um copo de leite na hora de dormir”. Por
sorte, a turma do deixa-disso entrou em cena e ficou combinado que a fala de
Lula fora só uma brincadeirinha. Adentrando, então, o recinto das coisas
sérias, qual deve ser nosso primeiro passo, além da já dita e repetida
pacificação? Meus caros leitores hão de me desculpar, mas é o óbvio ululante.
Precisamos ter um mínimo de ideia, um rabisco que seja de que país queremos e
somos capazes de construir. Evito, por pura antipatia, a expressão “projeto
nacional”. Precisamos cair na real de que nunca atingiremos o nível de vida da
Alemanha, da Suécia ou dos Estados Unidos. Mas por que pensar nesses termos?
Podemos perfeitamente pensar num país mais modesto, que cultive a normalidade
de uma renda anual por habitante aceitável e bem distribuída, no qual todas as
crianças possam “tomar seu copo de leite” e a educação e a segurança pública
sejam prioridades absolutas. Um país que enfrente de peito aberto o desafio da
reforma política e se livre da esparrela em que a Constituição de 1988 o meteu,
a ponto até de impedir o combate à corrupção. Esqueçamos de vez o “Brasil
Grande Potência” – aquela que nos levou a perder a década de 1980 – e cuidemos
da vida.
*Sócio-Diretor da Augurium Consultoria, é membros das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências
Cuidemos da vida ou coisa parecida.
ResponderExcluir