sábado, 19 de novembro de 2022

Carlos Góes - Herança maldita

O Globo

O desafio do terceiro mandato de Lula é repensar a estrutura fiscal do país, já que o teto de gastos não sobreviveu ao governo Bolsonaro

Eu morava em Brasília ao início do primeiro governo Lula. No dia da posse, o vermelho se misturava com camisas da seleção, ainda reverberando o pentacampeonato mundial de futebol, celebrado alguns meses antes naquela mesma Esplanada dos Ministérios.

No Brasil, a transição civilizada entre presidentes eleitos democraticamente foi ali inventada. O presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC) assinara uma medida provisória que instituía a equipe de transição e permitia ao governo entrante nomear funcionários e ter acesso aos processos governamentais. Posteriormente convertida em lei, este é, até hoje, o marco legal que governa as transições.

Lula herdou mais do que uma transição pacífica.

Herdou um longo processo de estabilização macroeconômica, começada com o Plano Real e consolidada em 1999 com o que entrou para história como “tripé macroeconômico”: a política de metas de inflação, superávits primários e câmbio flutuante.

Herdou também uma política de transferência de renda focalizada nos mais pobres, com Bolsa Escola, Vale Gás, Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti) e o projeto de consolidar tudo isso em um só plástico, por meio do Cadastro Único de programas sociais.

Na retórica, Lula chamava o legado do governo FHC de “herança maldita”. Na prática, a história era outra.

O governo colocou Henrique Meirelles, um deputado federal tucano, na presidência do Banco Central. Em pouco tempo, o PT abandonaria o Fome Zero, programa de distribuição direta de comida aos mais pobres, em favor do modelo de transferências focalizadas e utilizaria o Cadastro Único para unificar os programas anteriores sob o nome Bolsa Família.

O governo manteve estrita aderência à política do tripé macroeconômico. Deixou o BC subir juros para controlar a inflação. Não passou perto de controles cambiais. E entregou superávits primários em todos os anos de seu governo.

Um amigo meu, o cientista político Saulo Saïd (Iuperj), gostava de dizer: se o tripé macroeconômico é neoliberal, Lula foi campeão de neoliberalismo no Brasil.

Essa adesão às políticas do antecessor não foi aleatória. Lula era consciente de que a história de ambivalência dele e de seu partido — que ainda em 1998 chamavam o Plano Real de “fantasia” — depunha contra eles. A reinvenção de Lula em Lulinha-paz-e-amor e a Carta ao Povo Brasileiro, que marcaram a promessa de um continuísmo e não de ruptura, se materializavam nas políticas do começo do novo governo.

Mas, então, havia um alicerce sobre o qual era possível, com um mínimo esforço, manter o barco flutuando. Essa herança institucional permitiu ao PT avançar em diversas políticas mais afeitas ao seu programa, como a expansão das universidades federais sob uma nova política de cotas, uma política séria de preservação ambiental e a expansão do Bolsa Família.

Vinte anos depois, o contexto é muito diferente. Desta vez, o desafio do novo governo é mais difícil: não é expandir sobre alicerces firmes, mas repensar e reestruturar a estrutura fiscal brasileira.

O teto de gastos, âncora fiscal pensada como ajuste fiscal lento e gradual, evitando austeridade no curto prazo, não sobreviveu ao governo Bolsonaro. O primeiro tiro de morte foi a PEC dos Precatórios, que jogou para frente gastos que deveriam ter ocorrido neste governo, prejudicando a previsibilidade das despesas.

O tiro de misericórdia foi o grande aumento de gastos durante o período eleitoral, à revelia do espírito da Lei de Responsabilidade Fiscal.

Como gastos do governo são persistentes, é difícil reduzi-los no curto prazo. Por isso, é razoavelmente consensual que o teto precisará ser revisto. A questão é como fazê-lo sinalizando que não haverá descontrole na evolução da dívida pública: seja compensando aumento de gastos com aumento de impostos, ou limitando a expansão de gastos àqueles mais prioritários.

Se errar na mão, a equipe de transição pode se ver surpreendida. Afinal, a terceira parte da dinâmica da dívida pública é o custo de refinanciá-la, que depende não só do estoque da dívida, mas também dos juros de mercado, que são diretamente influenciados pela percepção de risco fiscal.

Como ensina o primeiro governo Lula, estabilidade macroeconômica é condição necessária para o progresso social. As escolhas atuais vão se refletir no sucesso ou fracasso do governo que ainda nem começou.

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