O Globo
A narrativa de polarização Sul-Sudeste
contra Norte-Nordeste é só um recorte. A realidade é mais desconfortável. Não
somos dois Brasis, somos vários
Ao fim do turbulento período eleitoral,
fica a impressão de que o Brasil é um país geograficamente dividido. O
Norte-Nordeste, mais pobre, seria aquela parte do país que “vota na esquerda”
enquanto o Centro-Sul, mais rico, seria a parte que “vota na direita”. Mas é
verdade que somos um continente dividido em dois Brasis?
Esse retrato parece intuitivo. Quem já
viajou por cidades como São Luís ou Teresina percebe que o nível de renda
nessas cidades é sensivelmente mais baixo do que em Florianópolis ou Curitiba.
Há muitos anos, o economista Edmar Bacha
cunhou um termo para caracterizar essas diferenças regionais no Brasil: a
Belíndia. O Brasil seria uma mistura de Bélgica com Índia.
Embora correto numa primeira aproximação, este recorte acaba ignorando que existe grande variação dentro de regiões, estados e mesmo cidades. Por exemplo: embora na média o Nordeste seja mais pobre que o Sul, há muitas famílias nordestinas mais ricas que famílias sulistas.
Uma solução para ir além das médias é
tentar se mergulhar em níveis mais baixos de agregação. Nessa última eleição,
movendo-se do nível estadual para o municipal (ou do nível municipal para os
bairros) percebe-se que as narrativas de divisões regionais de fato escondem
clivagens locais.
Por exemplo, enquanto Bolsonaro teve 55%
dos votos dos paulistas, Lula teve 54% dos votos dos paulistanos. Num nível
ainda mais granular, observa-se que Lula ganhou primordialmente nas Zonas Sul e
Leste da capital paulista — as partes mais pobres — mas também em alguns dos
bairros mais ricos, como Pinheiros. Bolsonaro ganhou em alguns bairros ricos,
como o Jardim Paulista, mas primordialmente nos bairros de classe média e média
baixa.
Essa relação é consistente com o que
indicado por pesquisas domiciliares nos últimos dias antes da eleição. Segundo
os dados da última pesquisa da Atlas Intel, divulgada dia 22 de outubro, o
governo Bolsonaro é reprovado pelos que ganham até R$ 2 mil e por aqueles que
ganham mais de R$ 10 mil por mês. E é aprovado pela classe média, que cai entre
esses dois limites de renda.
Tais resultados sugerem que nossas
clivagens políticas podem ser mais econômicas e sociais que geográficas. E há
motivos para crer que isso é verdade.
Alguns anos atrás, eu publiquei, em
conjunto com a economista Izabela Karpowicz, do FMI, um artigo sobre a evolução
da desigualdade dentro e entre estados brasileiros. Tal artigo traz uma
perspectiva regional desagregada — comparando estados em diferentes cortes de
suas respectivas distribuições de renda e ajustando pelo custo de vida em
diversas regiões do país.
Uma das conclusões mais interessantes é que
o Brasil é um país de convergência nos extremos e divergência nas classes
médias estaduais.
O que isso quer dizer?
Convergência nos extremos significa dizer
que os 5% mais pobres de qualquer estado tendem a estar entre os 5% mais pobres
do Brasil. O mesmo vale para os 5% mais ricos: quem está entre os 5% mais ricos
de qualquer estado, em geral, também está nos 5% mais ricos do país.
Ao contrário, as classes médias estaduais
divergem muito. Por exemplo, um domicílio no meio da distribuição em Alagoas
está entre os 30% mais pobres do Brasil. Já um domicílio mediano em Santa
Catarina está entre os 30% mais ricos do Brasil.
Como na narrativa eleitoral, olhar para a
renda média de estados ou mesmo municípios esconde a variação que existe entre
pessoas dentro dessas regiões. Um gaúcho de determinado grupo social
possivelmente se identifique mais em seus hábitos e posição política com um
maranhense de características similares do que com outro gaúcho de grupo
distinto.
Eu não tenho pretensão de tentar explicar
as causas das nossas clivagens políticas nesta coluna. Este é um fenômeno
complexo, que possivelmente passa não só pela desigualdade estrutural tão
característica da sociedade brasileira, mas também por uma miríade de outros fatores.
Eu deixo essa questão para sociólogos, historiadores e cientistas políticos.
Mas fica aqui uma lição: a narrativa de
polarização Sul-Sudeste contra Norte-Nordeste, seja político e social, é só um
recorte específico. Num nível mais granular, a realidade é mais desconfortável.
Não somos dois Brasis, somos vários. Na verdade, a polarização mora ao lado.
É,na cidade de São Paulo Lula vence Bolsonaro,o problema é no interior.
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