Folha de S. Paulo
Juridicamente impune, politicamente vivo,
socialmente normalizado
Bolsonaro sofreu derrota
eleitoral acachapante. Não pela pequena margem de votos favoráveis a Lula,
mas pelo quase milagre da vitória diante do arsenal de práticas ilegais da
campanha do presidente. Foi uma eleição corrupta e desequilibrada, em favor de
Bolsonaro. Nem assim conseguiu a reeleição. Uma façanha mítica na história do
presidencialismo.
Abuso de poder político, econômico e
religioso; orçamento secreto, auxílios eleitoreiros não revogados por apatia do
STF; coação
pública (por lideranças locais, como no escândalo de Coronel Sapucaia, revelado
por Caco Barcellos) e assédio privado (de
empresários sobre empregados, por exemplo), que atualizaram o voto do
cabresto; a insurreição da Polícia Rodoviária Federal para atrapalhar votos do
nordeste.
Bolsonaristas atribuem derrota à
"ditadura judicial", como chamam qualquer decisão que lhes desagrade.
Bolsonaro reclama
da parcialidade do TSE, que exigiu, por exemplo, transporte público
gratuito nas capitais do país para facilitar o voto de pessoas pobres.
Num fim patético e melancólico, Bolsonaro ficou 45 horas em silêncio enquanto suas redes incitavam arruaça de caminhoneiros pelas estradas do país. E, ao se pronunciar por 3 minutos, sem assumir responsabilidade por qualquer coisa, fez jus à biografia do covarde.
A humilhante derrota eleitoral de Bolsonaro
é passo modesto diante do desafio que colocou à democracia. O líder do maior
programa de delinquência política da história brasileira ganhará se sair
juridicamente impune (e elegível) e politicamente vivo. E se o bolsonarismo,
fenômeno que transcende Bolsonaro, tornar-se socialmente normalizado e
aceitável. São múltiplas as frentes de defesa da democracia que a figura derrotada
ajuda a iluminar.
Bolsonaro também pode ganhar enquanto o
risco que traz à democracia continuar mal compreendido. A ciência política não
autoriza nem recomenda, mas o analista Carlos Pereira, por exemplo, participa
desse debate por meio do abuso retórico ("democracia risco-zero"), da
ironia e da caricatura.
"Ih... a democracia brasileira não
ruiu", em janeiro de 2020, foi sua forma de decretar vitória contra quem
supostamente previa golpe com tanques na rua. Uma aposta que ninguém fez.
"Ufa... A democracia foi salva!", em novembro de 2022, serviu de
chiste para explicar que "foram sofisticadas instituições" que nos
salvaram.
Se Bolsonaro jamais vê instituições, mas
somente pessoas (vassalos ou inimigos), esse clube da análise política parece
jamais ver pessoas reais, mas somente instituições (funcionando). Assim
menospreza a fragilidade dessas instituições e o papel de quem as pilota.
Que autoridades possam ser corajosas e
prudentes, com maior ou menor capital político, ou corruptas e adeptas do
vandalismo, não entra na análise. Pereira profetizou que Bolsonaro derrotado
iria "cooperar pacificamente na transição". Pois é. Isso se chama
negacionismo político. Com uma pitada de "chuteful thinking" (primo
do "wishful thinking").
Diante da urgência da responsabilização
jurídica de Bolsonaro e seus agentes, já se começam a ouvir ecos da perversa
tradição brasileira da "pacificação", que de paz nunca trouxe muito.
Produziu, sim, pactos de amnésia, anistias assimétricas, acordos de cúpula empurrados
a fórceps às maiores vítimas da violência.
A anistia a agentes do Estado é uma espécie
de cheque pré-datado para nova conflagração. O apelo à pacificação, quando o
conflito se dá entre autor e vítima de crime, disfarça irresponsabilidade e
premia o criminoso. O conflito suprimido permanece latente e à espera da
ocasião para nova insurgência. A impunidade de Bolsonaro não só permitirá que
ele se reeleja mais adiante, como fará brotar clones tão ou mais perigosos.
Para desbolsonarizar o futuro é
indispensável reparar o passado e não subestimar a ameaça do presente.
Bolsonaro foi possível, entre outras coisas, pela extraordinária leniência
institucional à sua conduta ao longo de 30 anos. Nunca o levaram a sério. Nem
mesmo Alexandre de Moraes, veja só, que em 2018 votou por sua absolvição porque
viu na frase "quilombola
não serve nem para procriar" só grosseria. A história poderia ter sido
diferente.
Hoje o país tem nova oportunidade. As leis,
os crimes e as provas estão aí. Falta a disposição de autoridades mais
vertebradas que Augusto Aras. Não haverá outra chance.
*Professor de direito constitucional da
USP, é doutor em direito e ciência política e membro do Observatório Pesquisa,
Ciência e Liberdade - SBPC
Mais um texto magnífico do Conrado! Parabéns a ele e ao blog que divulga seu trabalho!
ResponderExcluirTemos "urgência da responsabilização jurídica de Bolsonaro e seus agentes," se não a DELINQUÊNCIA POLÍTICA tão empregada por ele não será realmente combatida e poderá retornar ao nosso país, ainda mais com tantos apoiadores eleitos "democraticamente". Os crimes de Bolsonaro devem ser denunciados, JULGADOS E PUNIDOS! Não podemos ter medo, e nem nossa Justiça! O STF foi importante pra manter nossa Democracia, mas foi INSUFICIENTE pra barrar grande parte dos CRIMES de Bolsonaro! Fora do Poder, Bolsonaro tem contas a ajustar com a JUSTIÇA! Esta terá que ter força e apoio pra cobrá-las... São muitas, e altas! Não podemos deixar Bolsonaro sair impune depois de todas as atrocidades e barbaridades que cometeu!
Conrado Mendes é grande - Eu nunca agradeci o blog pelos artigos postados,faço hoje,Obrigado!
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