O Estado de S. Paulo
É no autoritarismo que não nos preocupamos
com o futuro das gerações vindouras, com a desigualdade do tempo presente e com
o passado sem memória
Costumo dizer que nem tudo no Brasil é um
problema jurídico, embora quase tudo seja um conflito de natureza política. Mas
todos os nossos problemas são de cunho democrático? Também não. Porém uma
verdade é incontestável: discutir clima virou uma vertente democrática. Então,
a pergunta que pretendo responder aqui é a seguinte: por que discutir clima é
discutir democracia?
A palavra democracia, polissêmica que é,
traduz a complexidade de definições teóricas e de sensibilidade empírica sempre
que se quer defini-la. Podemos falar de democracia sob um viés político,
jurídico, histórico, de legitimidade, de mobilização social, etc. Para não
incorrer no erro das escolhas erradas, adoto a ideia, aqui, de que democracia é
aquilo que escolhemos deixar escrito em nossa Carta de direitos e deveres
legais em 5 de outubro de 1988.
Então, o que conceituo de democracia neste texto coincide com o conjunto de normas estatuídas em nossa Constituição, e daqui já deduzo que vivemos num Estado de Direito, que me diz o que faço ou deixo de fazer por meio da lei.
O meio ambiente é um direito fundamental
que, inscrito na Constituição, modernamente chamamos de questão climática, de
titularidade difusa, indissociável do dever de preservação por todas as
pessoas, públicas e privadas, nacionais e estrangeiras. O direito ao clima
passa a ser daqueles direitos que chamamos de núcleo duro, regentes de uma vida
democrática em razão de sua densidade transversal. Explico a seguir.
Primeiro ponto: discutir clima é discutir
democracia porque o exercício da cidadania só ocorre num espaço social. A
existência humana se dá a partir de um espaço geográfico que tem vida e
história, como defendia Milton Santos. O espaço enquanto meio ambiente mantém
uma relação direta com fatores que dialogam com a questão climática:
transporte, lazer, qualidade do ar, sistema de esgoto, mobilidade urbana, saúde
física e psíquica e acesso a água potável e alimento de qualidade.
Segundo ponto: discutir clima é debater
democracia porque um tema adere ao outro tendo como vetor a necessidade de
diminuição da desigualdade social no País. É justamente aqui que se observa a
importância de diálogo com temas que envolvem vulnerabilização da vida das
camadas mais desfavorecidas da sociedade e sua correlação com gênero, espaço,
etnia e origem. Basta lembrar a cor das vítimas dos desastres decorrentes de
deslizamentos e enchentes este ano no Recife, no sul da Bahia e em Petrópolis.
Terceiro ponto: se a paz é uma das
principais bandeiras da democracia, o combate à violência advinda das mudanças
climáticas e das ausências de políticas públicas se torna uma luta de
governantes escolhidos democraticamente pelo povo.
Há muitas espécies de violência: reais,
simbólicas, diretas e indiretas. Ter agravado o estado de pobreza pela fome ou
a dificuldade de acesso a água tratada são violências promovidas pelo Estado
não democrático no plano interno.
Externamente, o exemplo se percebe quando
se toma nota de que o continente africano é responsável por apenas 4% das
emissões de gases do efeito estuda, mas é o mais afetado pelas consequências do
clima, como secas, enchentes, inundações, êxodo climático, ausência de energia
e de alimento. Daí a importância do debate sobre perdas e danos e dívida
climática (e histórica).
Se nos voltarmos para o texto
constitucional, a relação entre democracia e clima se manifesta já nos
primeiros artigos que dizem que a República brasileira, constituída na
democracia, tem como alguns de seus fundamentos a cidadania e a dignidade
humana, mas que para tanto necessita de atender a certos objetivos, como a
redução das desigualdades sociais e regionais; a erradicação da pobreza e da
marginalização; construir uma sociedade livre, justa e solidária; e, ainda,
garantir o desenvolvimento nacional e, com isso, promover o bem de todos, sem
preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de
discriminação.
O que tentei trazer aqui foi um rol de
exemplos práticos que conectam a questão climática com a democracia, rechaçando
uma ideia teórica de democracia como algo distante, localizado no centro dos
Poderes constituídos, sob a decisão de autoridades e líderes no comando de
grandes potências. Não.
A democracia que imaginamos e queremos é
real, ela afeta a vida de milhões de brasileiros e brasileiras e cidadãos do
mundo e pode ser experimentada com políticas públicas efetivas (submetidas à
avaliação de resultados e melhorias no impacto distributivo), com orçamento e
com a transferência de recursos dos países mais ricos aos menos desenvolvidos.
Lucimar, mulher de pouco estudo, pescadora,
mãe de sete filhos, caiçara e solteira, poderia até não saber conceituar o que
é democracia, mas foi vítima da violência advinda de uma desigualdade agravada
pelo clima quando se viu morta com seis filhos depois de um deslizamento de
terra que atingiu seu barraco de único cômodo, em Paraty, em abril deste ano.
O clima desequilibrado mata. A democracia sadia
salva. Discutir clima é discutir democracia. Então, à guisa conclusiva, é no
autoritarismo que não nos preocupamos com o futuro das gerações vindouras, com
a desigualdade do tempo presente e com o passado sem memória.
*Procurador Federal (AGU), doutorando e
mestre em Direito pela UNB, é autor de ‘Vidas interrompidas pelo mar de lama’ (Lumen
Juris)
Ótimo artigo.
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