O Globo
A eleição de Lula devolve o Brasil ao
convívio global e nos brinda com vozes públicas que falam em linguagem adulta
Aportamos. E o Brasil tem pressa — ao
contrário do julgamento da História, que não concorre com o tempo para digerir
e significar a vitória transformadora de Luiz Inácio Lula da Silva sobre Jair
Bolsonaro. Com o final da férvida contagem de votos do domingo passado, e a
despeito das barricadas golpistas que tentaram reverter o resultado pela força,
o horizonte nacional e o ar que respiramos adquiriram leveza. A leveza da
normalidade. Voltamos a pisar em terra bastante firme para poder aperfeiçoar a
defesa do Estado Democrático, o que inclui conter uma das heranças mais
malditas da era bolsonarista: os grupos radicalizados da extrema direita. Daqui
para a frente deverão passar a operar de forma mais clandestina, mas sem
desviar do manual de aliciamento via redes sociais copiado dos operadores
golpistas de Donald Trump.
O presidente derrotado quebrou seu silêncio
negacionista de 44 horas após o anúncio oficial do resultado com um cochicho ao
ouvido do seu ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira:
—Vão sentir falta da gente.
Referia-se à mídia convocada ao Palácio do Alvorada para registrar a oblíqua admissão de que perdera — “injustamente”. Dois dias depois, fez uma segunda aparição pública pós-derrota, mais tíbia ainda. Vestia uma camiseta sombria que combinava com o ambiente bunker da transmissão.
—Desobstruam as rodovias e não pensem mal
de mim — disse, em voz mansa, meio perdidão, enquanto a criminosa obstrução das
estradas nacionais continuava full gas.
Errou no cochicho como nas falas. A mídia
independente e profissional por certo não sentirá sua falta. E seus seguidores
mais transtornados com a derrota — somados à ala miliciana da Polícia
Rodoviária Federal que permitiu os bloqueios — haverão, sim, de “pensar mal” do
líder encruado. Difícil não sentir orfandade súbita depois de anos ouvindo
profecias sobre os três únicos cenários possíveis para o “mito” e mártir Jair
Bolsonaro: ser preso, morto ou reeleito.
— Só Deus me tira da cadeira presidencial —
garantira ele.
Não calculou que Deus poderia estar na
força do voto popular e na confiabilidade das urnas eletrônicas, cuja
velocidade de apuração foi crucial para impedir conspirações maiores.
O capital político do capitão, turbinado
ilegalmente a toque de caixa e com verba pública, revelou eficácia eleitoral:
58,2 milhões de brasileiros (49,1% do total) votaram nele, contra os 60,3
milhões (50,9%) que elegeram Lula. Pelas mesmas razões, entre o primeiro e o segundo
turno, Bolsonaro conseguiu encurtar de 6,2 milhões de votos para 2,1 milhões a
distância que o separou do vencedor. Fosse o capitão um ser menos corroído pela
amoralidade, menos incivil e menos destrutivo, talvez conseguisse pensar no que
fazer com esse capital desgarrado.
De imediato, à sua espera, cresce a penca
de questionamentos jurídicos, inquéritos no Supremo, TSE, Tribunal do Trabalho
e tribunais de primeira instância que passarão a rondar sua estreia como
cidadão brasileiro qualquer, sem o guarda-chuva da impunidade legal reservada a
parlamentares e presidentes. Será uma assombração vitalícia, pois, como chefe
da nação, aviltou todos os poderes a seu alcance — o eleitoral e o político, o
econômico e o financeiro, o religioso e o institucional. Roubou o futuro de
várias gerações de brasileiros. Fez do país um laboratório particular de
autoritarismo primitivo e voraz, que se expandiria num sonhado segundo mandato.
Acabou. A eleição de Lula devolve o Brasil
ao convívio global e brinda o país com vozes públicas que falam em linguagem
adulta e interessada. A normalização da política democrática parece um bálsamo.
Mas Lula —o metalúrgico que inventou de querer ser presidente — quer mais. Sabe
ser o único derrotado nas três primeiras tentativas, antes de vencer e se
reeleger banhado em popularidade; o único que, ao longo de 580 dias de prisão
inconstitucional, conseguiu manter vivo e pulsante o maior partido de esquerda
das Américas; o único a reconquistar sua liberdade na Justiça. Agora, aos 77
anos, volta ao poder para um inédito terceiro mandato. Tem torcida mundial para
começar a arrancar o país de seu racismo estrutural e de castas excludentes.
Tem a chance de liderar a transição de uma sociedade e economia retrógradas
para o mundo atual , de emergências gritantes.
—O mundo estava com saudades do Brasil —
disse em sua primeira fala como presidente eleito.
Também o Brasil estava com saudades do
Brasil que ainda está por existir. Talvez já esteja a caminho. Na quinta-feira,
a estrelada ginasta brasileira Rebeca Andrade tirou nota máxima e sagrou-se
campeã individual no Mundial 2022 em Liverpool. Na prova de solo, voltou a
enfeitiçar juízes e espectadores apresentando-se ao som do funk paulista “Baile
de favela”.
—É para mostrar ao mundo do que o preto é
capaz —explicava já na Olimpíada de Tóquio. — A música é a minha cara, não tem
como negar. Vou representar todo mundo, preto, branco, pardo, todas as cores,
verde, azul e amarelo.
Vou procurar o vídeo.
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