domingo, 6 de novembro de 2022

Dorrit Harazim - País está de novo em terra firme

O Globo

A eleição de Lula devolve o Brasil ao convívio global e nos brinda com vozes públicas que falam em linguagem adulta

Aportamos. E o Brasil tem pressa — ao contrário do julgamento da História, que não concorre com o tempo para digerir e significar a vitória transformadora de Luiz Inácio Lula da Silva sobre Jair Bolsonaro. Com o final da férvida contagem de votos do domingo passado, e a despeito das barricadas golpistas que tentaram reverter o resultado pela força, o horizonte nacional e o ar que respiramos adquiriram leveza. A leveza da normalidade. Voltamos a pisar em terra bastante firme para poder aperfeiçoar a defesa do Estado Democrático, o que inclui conter uma das heranças mais malditas da era bolsonarista: os grupos radicalizados da extrema direita. Daqui para a frente deverão passar a operar de forma mais clandestina, mas sem desviar do manual de aliciamento via redes sociais copiado dos operadores golpistas de Donald Trump.

O presidente derrotado quebrou seu silêncio negacionista de 44 horas após o anúncio oficial do resultado com um cochicho ao ouvido do seu ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira:

—Vão sentir falta da gente.

Referia-se à mídia convocada ao Palácio do Alvorada para registrar a oblíqua admissão de que perdera — “injustamente”. Dois dias depois, fez uma segunda aparição pública pós-derrota, mais tíbia ainda. Vestia uma camiseta sombria que combinava com o ambiente bunker da transmissão.

—Desobstruam as rodovias e não pensem mal de mim — disse, em voz mansa, meio perdidão, enquanto a criminosa obstrução das estradas nacionais continuava full gas.

Errou no cochicho como nas falas. A mídia independente e profissional por certo não sentirá sua falta. E seus seguidores mais transtornados com a derrota — somados à ala miliciana da Polícia Rodoviária Federal que permitiu os bloqueios — haverão, sim, de “pensar mal” do líder encruado. Difícil não sentir orfandade súbita depois de anos ouvindo profecias sobre os três únicos cenários possíveis para o “mito” e mártir Jair Bolsonaro: ser preso, morto ou reeleito.

— Só Deus me tira da cadeira presidencial — garantira ele.

Não calculou que Deus poderia estar na força do voto popular e na confiabilidade das urnas eletrônicas, cuja velocidade de apuração foi crucial para impedir conspirações maiores.

O capital político do capitão, turbinado ilegalmente a toque de caixa e com verba pública, revelou eficácia eleitoral: 58,2 milhões de brasileiros (49,1% do total) votaram nele, contra os 60,3 milhões (50,9%) que elegeram Lula. Pelas mesmas razões, entre o primeiro e o segundo turno, Bolsonaro conseguiu encurtar de 6,2 milhões de votos para 2,1 milhões a distância que o separou do vencedor. Fosse o capitão um ser menos corroído pela amoralidade, menos incivil e menos destrutivo, talvez conseguisse pensar no que fazer com esse capital desgarrado.

De imediato, à sua espera, cresce a penca de questionamentos jurídicos, inquéritos no Supremo, TSE, Tribunal do Trabalho e tribunais de primeira instância que passarão a rondar sua estreia como cidadão brasileiro qualquer, sem o guarda-chuva da impunidade legal reservada a parlamentares e presidentes. Será uma assombração vitalícia, pois, como chefe da nação, aviltou todos os poderes a seu alcance — o eleitoral e o político, o econômico e o financeiro, o religioso e o institucional. Roubou o futuro de várias gerações de brasileiros. Fez do país um laboratório particular de autoritarismo primitivo e voraz, que se expandiria num sonhado segundo mandato.

Acabou. A eleição de Lula devolve o Brasil ao convívio global e brinda o país com vozes públicas que falam em linguagem adulta e interessada. A normalização da política democrática parece um bálsamo. Mas Lula —o metalúrgico que inventou de querer ser presidente — quer mais. Sabe ser o único derrotado nas três primeiras tentativas, antes de vencer e se reeleger banhado em popularidade; o único que, ao longo de 580 dias de prisão inconstitucional, conseguiu manter vivo e pulsante o maior partido de esquerda das Américas; o único a reconquistar sua liberdade na Justiça. Agora, aos 77 anos, volta ao poder para um inédito terceiro mandato. Tem torcida mundial para começar a arrancar o país de seu racismo estrutural e de castas excludentes. Tem a chance de liderar a transição de uma sociedade e economia retrógradas para o mundo atual , de emergências gritantes.

—O mundo estava com saudades do Brasil — disse em sua primeira fala como presidente eleito.

Também o Brasil estava com saudades do Brasil que ainda está por existir. Talvez já esteja a caminho. Na quinta-feira, a estrelada ginasta brasileira Rebeca Andrade tirou nota máxima e sagrou-se campeã individual no Mundial 2022 em Liverpool. Na prova de solo, voltou a enfeitiçar juízes e espectadores apresentando-se ao som do funk paulista “Baile de favela”.

—É para mostrar ao mundo do que o preto é capaz —explicava já na Olimpíada de Tóquio. — A música é a minha cara, não tem como negar. Vou representar todo mundo, preto, branco, pardo, todas as cores, verde, azul e amarelo.

 

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