O Estado de S. Paulo
O Brasil independente tem 200 anos, e está na hora de encarar os fantasmas de nosso passado
A escritora Maria Firmina dos Reis nasceu
em 1822, mesmo ano em que d. Pedro I deu o grito do Ipiranga. No ano em que se
comemora o bicentenário da Independência de nosso país, vale ler o romance
Úrsula, publicado pela primeira vez em 1859. Maria Firmina dos Reis é a autora
homenageada na Festa Literária de Paraty, a Flip, que ocorre nesta semana na
cidade histórica fluminense.
O romance Úrsula é um pouco como o Brasil. Aparentemente, trata-se de um folhetim sobre o amor impossível entre a personagem-título, que sofre nas mãos de um vilão cruel, e seu interesse romântico, o bacharel Tancredo. À medida que a história se desenrola, instalase um núcleo secundário, como nas tramas da televisão. O jovem Túlio, o atormentado Antero e a experiente Mãe Suzana aos poucos roubam a cena. Os três são negros escravizados. Irrompem em meio à fantasia romântica para mostrar a face real do Brasil do século 19.
Num dos capítulos mais impactantes de
Úrsula, Mãe Susana conta como foi arrancada de sua África natal e padeceu em
meio à fome e à sujeira num navio negreiro. É um dos poucos relatos de um
personagem escravizado na literatura brasileira, numa época em que o trabalho
cativo era a base de nossa economia.
“Esse livro é importante porque mostra
como, mesmo no século 19, nem todos achavam que a escravidão era natural”, diz
Fernanda Bastos, entrevistada no minipodcast da semana. “É uma autora negra
fazendo uma denúncia social.”
Fernanda é uma das curadoras da Flip e
também a responsável pela reedição recente de Úrsula pela editora Figura de
Linguagem. Em 20 anos de Flip, é a primeira vez que a homenageada é uma autora
negra.
Como a economista Zeina Latif lembrou
semanas atrás nesta coluna, o racismo e a escravidão estão na raiz de várias
mazelas nacionais, entre elas a dificuldade em criar um sistema de educação
pública de qualidade. É importante que tais temas sejam debatidos num espaço
como a Flip. Em entrevista à coluna, o jornalista e escritor Laurentino Gomes
advogou que o Brasil deveria ter um museu da escravidão, para nos lembrar da
herança infame com a qual lidamos.
O Brasil independente tem 200 anos, e está
mais do que na hora de encarar os fantasmas de nosso passado. Eles são
responsáveis pelo maior déficit que precisamos combater, que é o déficit de
cidadania. Maria Firmina dos Reis, a homenageada da Flip, nos lembra que nosso
país não pode ser como o enredo de Úrsula, onde um folhetim romântico é fachada
para uma realidade de pobreza e exclusão – realidade vivida por milhões de
brasileiros.
*Escritor, professor da Faap e doutorando
em ciência política na Universidade de Lisboa
Nunca tinha ouvido falar no romance,bom saber.
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